quinta-feira, 17 de março de 2011

Folha de goiabeira

- Vamos brincar de doente? – sugeriu o irmão do meio, sem muita ênfase, só pra se ocupar com alguma coisa. Mas poucos segundos depois sentiu-se o mais esperto do mundo, porque viu que sua idéia fez brilhar os olhos da irmã mais velha.

- Isso! Eu sou a mãe que coloca a rodela de batata gelada na testa, o Marquinho é o pai doente e você é o filhinho que fica de olho arregalado na beira da cama. Vai, Marquinho, deita ali perto da areia.

O irmão mais novo foi para o local indicado arrastando os pés. Já há alguns dias andava assim, amuado, quietinho, meio mole, só aceitou brincar porque seu papel era ficar deitado na grama pegando sol.
A irmã correu até a goiabeira pra pegar umas folhas que seriam as batatas geladas. Enquanto isso, o irmão do meio descalçava os sapatos para ficar mais confortável sentar sobre os pés.
- Pronto, voltei. Agora, Marquinho, você diz ai…ai… aaai…
- Não quero dizer nada…
- Tem que dizer, ué. Era assim que o papai fazia, você tem que fazer igual.
Marquinho olhou pra ela e ficou calado. A irmã deu de ombros e continuou a brincadeira.
- Ah, meu Deus, ele está ardendo em febre! Filho, vai lá na cozinha e me traz uma vasilha com água da geladeira, rápido. Essas batatas já estão ficando quentes.
- É pra ir de verdade?
- Não, né? De mentirinha, só. Finge que seu sapato é a vasilha, vai ali na margarida e finge que ela é a garrafa, vai. Amor, ainda tá doendo muito?

Com muito carinho e delicadeza, tirou as folhas de goiabeira da testa de Marquinho, pôs a mão a sentir a temperatura, e continuou sussurando “Ai, meu Deus, ajuda ele…”. Voltou o irmão do meio.
- Aqui está mamãe. Olha, eu coloquei essas pétalas pra fingir que é a água, tá bom?
- Não, então deixa a pétala ser o gelo. Obrigada, meu filho. Agora vai lá pra fora brincar com seus irmãos mais velhos.
- Tá bem, obrigada, mãe.
- Não, não é assim. Você tem que ficar. Lembra que o Marquinho ficava lá com eles o dia todo? Você é o filho mais novo, o mais novo tem que ficar sentado no pé da cama.
- Ah, não, eu quero ser eu…
- Depois a gente brinca você sendo você. Agora você é o Marquinho e o Marquinho é o papai.
- Ai… ai…
- Olha! O Marquinho resolveu brincar! Isso, Marquinho, mas fala mais alto.
- Mãe…
- Não, eu sou a mãe, mas como você é o papai, você tem que me chamar de amor, ou então de Carlita.
- Ai… mãe…
- Não é assim, Marquinho!
Ela respondia o irmão enquanto misturava as folhas de goiabeira com as pétalas de margarida dentro do sapato do outro.
- Você tá mesmo parecendo a mamãe, mana. Só falta deixar o cabelo cair assim, de lado.
- Ai, mãe…
- Vc acha? É “amor”, Marquinho… O que foi, meu amor? Bebe um pouquinho de água. Eu preciso tirar esse cobertor, deixa, vai… Olha, a batata tá geladinha de novo, vou colocar na sua testa.

O irmão do meio tentava fazer cara de triste, mas o franzido da testa não durava muito tempo, então começou a mexer nos dedos dos pés, olhando pra eles. De vez em quando olhava os dois irmãos, que tão bem interpretavam seus papéis, e voltava a se concentrar nos dedos, pra interpretar à altura.

- Ih, o Marquinho dormiu. Acorda ele.
- Não, deixa ele dormir, meu filho. Seu pai precisa descansar – disse a irmã, que não gostava de interrupções realistas no meio da brincadeira.

A mãe de verdade, Carlita, saiu na porta da frente à procura das crianças, e estancou ao vê-los.
- O que vocês estão fazendo?
- Estamos brincando de doente, mamãe – respondeu a mais velha, assustada.
- Parem agora com isso! Eu não quero saber dessa brincadeira, estão ouvindo? Levantem os três já e vão lavar as mãos. O lanche de vocês está pronto.

Os mais velhos deram um pulo e saíram andando rápido com medo de mais bronca.
- Ei, calça seu sapato, mocinho. Marcos, levanta, você já ouviu a mamãe, não me faça te chamar de novo. – Dizendo isso, deu as costas e foi andando pra dentro de casa. Antes de entrar, percebeu que o garoto não se moveu. Estranhou.

- Marcos! Levanta logo! Um… Dois…
Os outros filhos nem chegaram ao banheiro. Ouvindo que Marquinho levaria bronca, voltaram pra ver, rindo baixinho. A mãe afastou nervosamente as folhas de goiabeira da testa do filho, e sentiu-as quentes. Talvez fosse porque ela esteve mexendo na água, a percepção é sempre diferente.
- Marcos, levanta, agora a mamãe tá pedindo com carinho. Vem, meu filho.
Pegou o menino pelo braço, e o bracinho não ofereceu qualquer resistência, apenas pendeu mole. O coração de Carilta começou a perder o compasso.

Vendo a demora na bronca, os filhos foram se aproximando de Carlita, e já perguntando o que estava acontecendo. Quando a mãe levantou, a filha viu passar rapidamente em seu rosto o mesmo tom cinza do dia em que a encontrou no quarto beijando a testa do pai e fechando-lhe os olhos com as mãos. O cabelo farto caiu de lado da mesma maneira também, só que em outra direção. Apressada, Carlita foi se dirigindo ao armazém.

- Mãe, era só brincadeira – disse, num começo de pânico, a menina. – Marquinhos, não ouviu a mamãe chamando? Tem sanduiche de presunto pra gente, vem…
- O que tá acontecendo? – perguntou o do meio, chegando atrasado.
- Marquinho… Anda… – a filha já tinha lágrima nos olhos. Abaixou-se pra sacudir o irmão, e ele não reagiu. – Mano, me ajuda a acordar o Marquinho, rápido… Marquinho…
A essa altura os dois já choravam, o irmão do meio não sabia bem por quê, mas chorava assim mesmo. Souberam, pelo som dos passos, que a mãe voltava. Afastaram-se do irmão e com terror fitaram Carlita, uma leoa, com olhar resoluto e chispante. A mãe repetia de si pra si que uma viúva não pode perder a compostura, e prosseguiu até junto das crianças. Abaixou-se e tomou o Marcos nos braços, ouvindo a filha insistentemente dizer que ele estava só brincando, até aiai ele dizia há poucos minutos. Mas seu mantra de viúva não a deixava ouvir nada, continuou andando para os fundos do terreno, onde uma pá a esperava.

- Mãe, não faz isso com ele, ele tá fingindo, é tudo mentirinha, mãe!
A filha esperneava sem fim. Carlita, com uma força e destreza quase animalesca de tão sobre-humana, fazia a cova ganhar fundura sem demora. Evitava olhar para o lado, pois a terra que cobria o corpo do marido ainda não tivera tempo nem de deixar crescer uma erva daninha. Apenas algumas folhas de goiabeira cobriam a nudez do solo, já secas e esfareladas. O irmão do meio chorava, mais por estar assustado do que por compreender o que se passava.

Tomando o filho amolecido nos braços, sob os protestos da mais velha, Carlita deitou-o na fundura da terra fria com cuidado. Apenas beijou-lhe a testa, pois não foi necessário fechar-lhe os olhos. Repetia em sua mente que uma viúva não pode perder a compostura, saiu de dentro da cova e respirou fundo. Com as mãos, começou a empurrar a terra pra cima daquele pequeno corpo, sem contudo olhar pra ele.

- Mãe, não enterra o meu irmão!

Carilta continuava indiferente aos gritos da menina, e pouco a pouco, Marquinhos ia se ocultando. Primeiro os pés, depois os joelhos, o peito. De súbito, a irmã se calou e fraquejou as pernas. A mãe nem se apercebeu desse silêncio repentino, e em pouco tempo, já não se via mais o menino. A filha estava atônita, não conseguia articular nenhuma palavra, o mais novo chorava finalmente entendendo os fatos. Terminado o enterro, Carlita acolheu os dois no colo e levou-os para dentro. Nunca mais tocaram no assunto.

Vinte e nove anos se passaram desde então, mas até hoje a filha treme quando vê alguém acordar. Ela acredita, com toda a força de sua inocência sepultada, que Marquinhos abriu os olhos antes que a terra, misturada com folhas de goiabeira, caísse em seu rosto infantil.

Um comentário:

Guilherme Fonseca disse...

Nossa, manu, pára de me surpreender!
Adorei o conto, muito bom. O que vou falar agora voce pensará que é exagero, mas nao é; tenho lido os contos de machado de assis, e nao que ele escreva mal, mas prefiro muito mais os seus!

QUal email vc esta usando? tenho te mandado minhas postagem, mas n sei se esta recebendo.

Fiz dois contos e ficaria muito contente se vc os lesse e desse sua opniao.

Fica com Deus minha amiga.
Com carinho, Gui!