- Vamos brincar de doente? – sugeriu o irmão do meio, sem muita
ênfase, só pra se ocupar com alguma coisa. Mas poucos segundos depois
sentiu-se o mais esperto do mundo, porque viu que sua idéia fez brilhar
os olhos da irmã mais velha.
- Isso! Eu sou a mãe que coloca a rodela de batata gelada na testa, o
Marquinho é o pai doente e você é o filhinho que fica de olho
arregalado na beira da cama. Vai, Marquinho, deita ali perto da areia.
O irmão mais novo foi para o local indicado arrastando os pés. Já há
alguns dias andava assim, amuado, quietinho, meio mole, só aceitou
brincar porque seu papel era ficar deitado na grama pegando sol.
A irmã correu até a goiabeira pra pegar umas folhas que seriam as
batatas geladas. Enquanto isso, o irmão do meio descalçava os sapatos
para ficar mais confortável sentar sobre os pés.
- Pronto, voltei. Agora, Marquinho, você diz ai…ai… aaai…
- Não quero dizer nada…
- Tem que dizer, ué. Era assim que o papai fazia, você tem que fazer igual.
Marquinho olhou pra ela e ficou calado. A irmã deu de ombros e continuou a brincadeira.
- Ah, meu Deus, ele está ardendo em febre! Filho, vai lá na cozinha e
me traz uma vasilha com água da geladeira, rápido. Essas batatas já
estão ficando quentes.
- É pra ir de verdade?
- Não, né? De mentirinha, só. Finge que seu sapato é a vasilha, vai
ali na margarida e finge que ela é a garrafa, vai. Amor, ainda tá doendo
muito?
Com muito carinho e delicadeza, tirou as folhas de goiabeira da testa
de Marquinho, pôs a mão a sentir a temperatura, e continuou sussurando
“Ai, meu Deus, ajuda ele…”. Voltou o irmão do meio.
- Aqui está mamãe. Olha, eu coloquei essas pétalas pra fingir que é a água, tá bom?
- Não, então deixa a pétala ser o gelo. Obrigada, meu filho. Agora vai lá pra fora brincar com seus irmãos mais velhos.
- Tá bem, obrigada, mãe.
- Não, não é assim. Você tem que ficar. Lembra que o Marquinho ficava
lá com eles o dia todo? Você é o filho mais novo, o mais novo tem que
ficar sentado no pé da cama.
- Ah, não, eu quero ser eu…
- Depois a gente brinca você sendo você. Agora você é o Marquinho e o Marquinho é o papai.
- Ai… ai…
- Olha! O Marquinho resolveu brincar! Isso, Marquinho, mas fala mais alto.
- Mãe…
- Não, eu sou a mãe, mas como você é o papai, você tem que me chamar de amor, ou então de Carlita.
- Ai… mãe…
- Não é assim, Marquinho!
Ela respondia o irmão enquanto misturava as folhas de goiabeira com as pétalas de margarida dentro do sapato do outro.
- Você tá mesmo parecendo a mamãe, mana. Só falta deixar o cabelo cair assim, de lado.
- Ai, mãe…
- Vc acha? É “amor”, Marquinho… O que foi, meu amor? Bebe um
pouquinho de água. Eu preciso tirar esse cobertor, deixa, vai… Olha, a
batata tá geladinha de novo, vou colocar na sua testa.
O irmão do meio tentava fazer cara de triste, mas o franzido da testa
não durava muito tempo, então começou a mexer nos dedos dos pés,
olhando pra eles. De vez em quando olhava os dois irmãos, que tão bem
interpretavam seus papéis, e voltava a se concentrar nos dedos, pra
interpretar à altura.
- Ih, o Marquinho dormiu. Acorda ele.
- Não, deixa ele dormir, meu filho. Seu pai precisa descansar – disse
a irmã, que não gostava de interrupções realistas no meio da
brincadeira.
A mãe de verdade, Carlita, saiu na porta da frente à procura das crianças, e estancou ao vê-los.
- O que vocês estão fazendo?
- Estamos brincando de doente, mamãe – respondeu a mais velha, assustada.
- Parem agora com isso! Eu não quero saber dessa brincadeira, estão
ouvindo? Levantem os três já e vão lavar as mãos. O lanche de vocês está
pronto.
Os mais velhos deram um pulo e saíram andando rápido com medo de mais bronca.
- Ei, calça seu sapato, mocinho. Marcos, levanta, você já ouviu a
mamãe, não me faça te chamar de novo. – Dizendo isso, deu as costas e
foi andando pra dentro de casa. Antes de entrar, percebeu que o garoto
não se moveu. Estranhou.
- Marcos! Levanta logo! Um… Dois…
Os outros filhos nem chegaram ao banheiro. Ouvindo que Marquinho
levaria bronca, voltaram pra ver, rindo baixinho. A mãe afastou
nervosamente as folhas de goiabeira da testa do filho, e sentiu-as
quentes. Talvez fosse porque ela esteve mexendo na água, a percepção é
sempre diferente.
- Marcos, levanta, agora a mamãe tá pedindo com carinho. Vem, meu filho.
Pegou o menino pelo braço, e o bracinho não ofereceu qualquer
resistência, apenas pendeu mole. O coração de Carilta começou a perder o
compasso.
Vendo a demora na bronca, os filhos foram se aproximando de Carlita, e
já perguntando o que estava acontecendo. Quando a mãe levantou, a filha
viu passar rapidamente em seu rosto o mesmo tom cinza do dia em que a
encontrou no quarto beijando a testa do pai e fechando-lhe os olhos com
as mãos. O cabelo farto caiu de lado da mesma maneira também, só que em
outra direção. Apressada, Carlita foi se dirigindo ao armazém.
- Mãe, era só brincadeira – disse, num começo de pânico, a menina. –
Marquinhos, não ouviu a mamãe chamando? Tem sanduiche de presunto pra
gente, vem…
- O que tá acontecendo? – perguntou o do meio, chegando atrasado.
- Marquinho… Anda… – a filha já tinha lágrima nos olhos. Abaixou-se
pra sacudir o irmão, e ele não reagiu. – Mano, me ajuda a acordar o
Marquinho, rápido… Marquinho…
A essa altura os dois já choravam, o irmão do meio não sabia bem por
quê, mas chorava assim mesmo. Souberam, pelo som dos passos, que a mãe
voltava. Afastaram-se do irmão e com terror fitaram Carlita, uma leoa,
com olhar resoluto e chispante. A mãe repetia de si pra si que uma viúva
não pode perder a compostura, e prosseguiu até junto das crianças.
Abaixou-se e tomou o Marcos nos braços, ouvindo a filha insistentemente
dizer que ele estava só brincando, até aiai ele dizia há poucos minutos.
Mas seu mantra de viúva não a deixava ouvir nada, continuou andando
para os fundos do terreno, onde uma pá a esperava.
- Mãe, não faz isso com ele, ele tá fingindo, é tudo mentirinha, mãe!
A filha esperneava sem fim. Carlita, com uma força e destreza quase
animalesca de tão sobre-humana, fazia a cova ganhar fundura sem demora.
Evitava olhar para o lado, pois a terra que cobria o corpo do marido
ainda não tivera tempo nem de deixar crescer uma erva daninha. Apenas
algumas folhas de goiabeira cobriam a nudez do solo, já secas e
esfareladas. O irmão do meio chorava, mais por estar assustado do que
por compreender o que se passava.
Tomando o filho amolecido nos braços, sob os protestos da mais velha,
Carlita deitou-o na fundura da terra fria com cuidado. Apenas
beijou-lhe a testa, pois não foi necessário fechar-lhe os olhos. Repetia
em sua mente que uma viúva não pode perder a compostura, saiu de dentro
da cova e respirou fundo. Com as mãos, começou a empurrar a terra pra
cima daquele pequeno corpo, sem contudo olhar pra ele.
- Mãe, não enterra o meu irmão!
Carilta continuava indiferente aos gritos da menina, e pouco a pouco,
Marquinhos ia se ocultando. Primeiro os pés, depois os joelhos, o
peito. De súbito, a irmã se calou e fraquejou as pernas. A mãe nem se
apercebeu desse silêncio repentino, e em pouco tempo, já não se via mais
o menino. A filha estava atônita, não conseguia articular nenhuma
palavra, o mais novo chorava finalmente entendendo os fatos. Terminado o
enterro, Carlita acolheu os dois no colo e levou-os para dentro. Nunca
mais tocaram no assunto.
Vinte e nove anos se passaram desde então, mas até hoje a filha treme
quando vê alguém acordar. Ela acredita, com toda a força de sua
inocência sepultada, que Marquinhos abriu os olhos antes que a terra,
misturada com folhas de goiabeira, caísse em seu rosto infantil.
Um comentário:
Nossa, manu, pára de me surpreender!
Adorei o conto, muito bom. O que vou falar agora voce pensará que é exagero, mas nao é; tenho lido os contos de machado de assis, e nao que ele escreva mal, mas prefiro muito mais os seus!
QUal email vc esta usando? tenho te mandado minhas postagem, mas n sei se esta recebendo.
Fiz dois contos e ficaria muito contente se vc os lesse e desse sua opniao.
Fica com Deus minha amiga.
Com carinho, Gui!
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