- Traz o cobertor, filha, está ali em cima do baú.
A garotinha, com pijama de flanela e tranças que facilitavam o pentear
do cabelo na manhã seguinte, foi pisando as meias por cima dos
brinquedos espalhados pelo pequenino quarto de dormir. No caminho de
volta à cama, Carolina parou em frente à estante baixa. Agachou-se a
admirar a lombada dos gigantescos livros infantis que não sabia ler
ainda.
- Quer que eu conte uma história pra você, Carol?
Carolina olhou a mãe lentamente. Virou-se uma vez mais para os livros e escolheu um de capa amarela.
- Hoje eu que vou ler pra senhora dormir. Mas é pra dormir, tá bem?
- Sim, senhora, mocinha - retrucou a mãe bem-humorada, ajeitando o travesseiro da menina. E por que você escolheu essa história?
- Por que eu gosto desse cheiro, ó. - Dizendo isso, enfiou a gravura
emborrachada da capa debaixo do nariz da mãe, tentando fazer cosquinha*.
- Agora deixa eu te cobrir. Pronto, fecha os olhinhos pra imaginar
melhor.
A mãe tinha muito prazer em ver a filha imitar seus gestos. Nessas horas
tinha impressão de que a educação da menina não ia tão mal como seu
pânico de tempos atrás previa. Solange fechou os olhos e esperou.
Esperou. E estranhou.
- Ué, cadê a história, Carol?
A menina olhava o livro aberto com muita preocupação.
- Mãe... isso aqui está errado.
- O quê?
- Isso tudo...!
Os braços magrinhos se erguiam no ar como se fossem de uma matrona
italiana. A mãe sentou-se na cama, curiosa, e trouxe a filha pra perto.
- Espera, vamos ver. O que é "isso tudo"?
- Esse livro é meu, não é?
- É.
- Então por que ele tá todo escrito se eu não sei ler? Era pra ser sem
palavras, só com as figurinhas... E agora, como vou te contar a
história?
A mãe sentiu orgulho, sabe-se lá por quê. E o avô, na quinta-feira, adoraria saber dessa façanha.
- É porque quem escreveu esse livro sabia que a mamãe ia estar aqui pra
ler pra você. Quando você aprender a ler, poderá ler sozinha, é só
esperar, meu amor.
A menina não parecia muito convencida. Fechou o livro e abandonou-o em
seu próprio colo. O dedinho passeava desconsolado e lento pelo alto
relevo do emborrachado. Solange esperava que Carolina rompesse seu
próprio silêncio, até que o rompante veio.
- Eu não gostei dessa casa, mãe.
O semblante da mãe transfigurou-se de tristeza. A viuvez era muito
difícil e ela não sabia até que ponto Carolina compreendia o sentido da
morte, menos ainda a necessidade da mãe em sair da casa onde foram tão
felizes eles três, agora apenas elas duas. A inocência da filha diante
de uma situação tão trágica dilacrava seu coração.
- Ah, Carolita... - Levou a filha ao colo, com livro e tudo. - Você
talvez seja muito pequena pra compreender certas escolhas que os adultos
têm que fazer. É que depois que... aconteceu aquele passeio, mamãe
encontrou essa casa aqui, que é mais perto da sua escola. Não é melhor?
Carolina, não se sabe se por dissimulação ou inocência, esperou ainda alguns segundos pra retrucar:
- Não, mãe, não é dessa daqui, é essa do livro.
A mãe até deixou o braço cair pra descontrair os músculos tão tensos.
- O que há de errado nela?
- Ela é torta. E usa chapéu.
A mãe riu-se de leve. De alívio.
- E por que as casas não podem usar chapéu?
- Podem, mas só se elas forem carecas igual o tio Fernando, pra se proteger do sol e não queimar os miolos.
O papo havia voltado ao normal. Carol recomeçava as tautologias da
família e dava sua risada gostosa e com os primeiros indícios de sono.
- Mamãe pode então contar a história pra você?
- A gente conta junto, então, mamãe. A senhora fala do que está escrito e eu da figurinha.
Começaram a contar a história mista. A mãe ficou com a narração e Carol
com as falas inventadas, o que fazia que cada página levasse ao menos
cinco minutos de leitura. Na quarta página, quando Carol já piscava com
mais demora que o habitual, a mãe começou a escorregar a menina para a
cama, disfarçadamente, para que ela não perdesse o clima nem o sono. Sem
perceber, Carol ia se deixando adormecer e passou os olhos mal
conscientes pela capa do livro. A mãe deixou o último gancho narrativo
pra ver se a menina ainda estava acordada. Foi quando ela proferiu as
últimas falas da noite.
- Aí o Frederico disse: "Eu não gosto dessa casa, mamãe". E a mamãe
respondeu: "Mas nessa casa tem um carro que voa, você não gosta dele?"
A mãe tentou articular alguma narração pra que ela dormisse logo, mas o
coração ficou aos pulos de repente. Carol bocejou longamente.
- Aí o Frederico respondeu - deu outro bocejo ainda maior - todo
sorridente: "Quero, quero! Assim a gente vai poder visitar o papai, lá
no céu!"
Carolina tombou pra um lado e dormiu pesadamente. Solange tombou pro outro e levemente chorou.
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
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