sábado, 9 de maio de 2009

A cadela e o moribundo

Já não tinha rumo porque não sabia onde o sol se punha. Para ele era sempre meio-dia, um meio-dia quente, abafado, que torrava a paciência e deixava as cinzas no emaranhado do cabelo.

O fluir da cidade já era indiferente para ele, como eram antigamente as trilhas das formigas que vez ou outra lhe picavam o pé. Mas agora estava velho, fraco, alérgico, quase anafilático. Remediava-se com gelo para não morrer com as ferroadas que a cidade lhe cravava.

Foi então que uma cadela surgiu em sua miséria. Ele não saberia dizer quando, pois ninguém dá valor ao tempo enquanto não é tragado pelas sombras. Lembrava apenas dos contornos do lugar: uma rua comum que o abrigava durante a siesta de seu eterno meio-dia. Na ocasião, sonhava com os pássaros de seu passado, quando uma bicicleta trombou nele. Abrindo os olhos, viu a cadela. Ela latia raivosamente para os fones de ouvido que guiavam as duas rodas.

Gostaria de dizer que "a partir daí começaram a conviver", mas seria mentira, porque ela era infiel. Assim como vinha, ia-se, sem porquês, sem prazos e sem promessas. Dedicava a ele uma parcela de seu tempo e então partia, silenciosa. Entretanto, ele não podia cobrar nada. Bem sabia que apesar de ser sua, aquela cadela não lhe pertencia.

Assim os carros passavam, as lixeiras se abriam, os vidros se fechavam, e ele soube que iria morrer. O sol fustigante já lhe havia escurecido a pele, os olhos e o futuro, transformado as roupas em peso e as feridas em chagas. A cadela estava com ele.

A propósito, desde que o gelo acabara, cadela não mais partia. Teriam se tornado enfim, amigos? Pertenceriam um ao outro agora? Sentiria ela compaixão? Ou seria uma simples coincidência? Isso pouco importava agora, ele estava morrendo. Suas feridas sangravam e não tinha mais gelo, estava à mercê de uma cadela infiel.

Foi quando, em seus últimos suspiros, viu a cadela levantar-se e se aproximar dele. Sentiu algo úmido deslizar sobre seu rosto repetidamente, e em suas mãos, e em seu peito. Então teve a certeza de que saía da vida levando ao menos um acerto,porque soube escolher muito bem o nome da cadela.

E assim morreu, tendo Saudade a lamber-lhe as feridas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Achei psicológico, achei bonito, achei Lispector...