quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Morte na Sé

Para o turista, o trecho entre o Pátio do Colégio e a Igreja da Sé pode ser nada mais que um trajeto curto feito a passos apressados com pertences comprimidos junto ao peito. Para Afrânio, porém, aquele era um berço. O berço que a cidade, já crescida e caridosa, cedeu a ele para que ali também passasse sua infância. Mesmo depois de grande, diferente de São Paulo, ele não deixou aquelas calçadas ao relento. Principalmente depois de encontrar Irene, bem ali no marco zero. Ao vê-lo com os pés no Rio, a moça maliciosamente se apontou para Cuiabá, até que os dois se encontraram em Santos e a partir dali sumiram do mapa. Temporariamente, apenas.

Muitos meses já tinham se passado quando, durante alguns segundos, Afrânio sentiu-se completamente perdido. Estava trêmulo com todo aquele sangue escorrendo pelas mãos.

Ajoelhou-se perplexo. Pôs a faca debaixo de algumas folhas secas e ajeitou aquele corpo já sem vida sobre o sangue ainda vertente na grama. Afastou-se. Com letargia em todos os músculos, procurou a melhor forma de se esconder de um olhar mais atento e da própria realidade. Precisava se limpar urgentemente.

Por sorte, a imundície do casaco fazia com que o sangue fosse, dentre todas, a mancha mais discreta. Foi quando ergueu os olhos e viu um turista benzendo-se com um sinal da cruz. Lembrou-se da Sé, aquela igreja de grandes vitrais azuis onde não fora batizado. Arrastou-se até escadaria, meio cambaleante, embriagado pela memória tátil dos últimos minutos. Sentou-se, tentando recobrar o fôlego. A indiferença que recebia como esmola penitente da caridade cristã nunca havia sido tão útil como agora.

Entrou. A familiaridade do ambiente somada à angústia interna não o permitiam ter nenhuma sensação de paz, conforto ou seja-lá-o-que-se-sente-quando-se-entra-numa-igreja. Ainda não sabia muito bem o que o havia levado até lá. As pessoas, ajoelhadas em oração, elevavam-se tão grandemente para se encontrarem com seu Deus que pareciam nem se dar conta de seus próximos. Era uma subversão às leis divinas, mas Afrânio não sabia disso, apenas sentiu sem poder racionalizar.

O cansaço o fez sentar numa daquelas cadeiras. E de repente viu a cena que mudaria sua vida. Alguém à sua frente tinha a imagem do Cristo. Os olhos eram opacos, como de qualquer outra imagem de gesso mal pintada, mas o Cristo, que era o Salvador, também tinha as mãos sujas de sangue.

Afrânio sentiu como se estivesse arreganhando uma janela depois de um minuto inteiro de asfixia. O Cristo também tinha sangue nas mãos! Quis sair correndo e tocá-lo, unir um sangue no outro e assim ser redimido, mas sabia que o dono daquela imagem não permitiria. Quis comungar, beber do vinho em longos goles que escorressem por todo o seu corpo, mas esse era um privilégio apenas dos sacerdotes. A euforia de libertação não permitia uma prece silenciosa, precisava correr e gritar e pular e... Levantou-se para fazer tudo isso do lado de fora. Mas uma tina de água benta atraiu sua atenção na saída. Pensou que aquela água poderia sacramentar o alívio de sua existência. Contrito, mergulhou as duas mãos.

Era uma água fresca, límpida, que aos poucos foi se tornando tinta com o sangue que saía das mãos pecadoras de Afrânio. Parecia que a água lhe penetrava pelos poros e atingia a alma ressequida. Com os olhos fechados, Afrânio sorriu.

Um homem de terno escuro assustou-se ao ver aquela cena. A essa altura, toda a Praça da Sé já sabia que uma mulher jazia morta no gramado próximo ao metrô. Sem pensar duas vezes, o homem agarrou Afrânio pelos braços e, na confusão, várias pessoas interromperam seu contato com o divino para contactarem a polícia metropolitana.

E foi assim que Afrânio foi preso por ter nas mãos o sangue de Irene. Ele só não pôde explicar que se sujou com ele tentando salvar a amada desgostosa, que ao se descobrir grávida, enfiara uma faca no próprio ventre por não querer dar ao filho o mesmo berço que ela, Afrânio e a cidade tiveram.

3 comentários:

JuH =) disse...

primoroso. emocionei-me, manu. =)

Lex disse...

Tem moscas passeando por aqui...

Manu disse...

Né? Também acho. A dona desse blog é uma irresponsável, da próxima vez que a vir vou puxar a orelha dela...