sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O encarcerado


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Há vários “primeiros” que a gente nunca esquece, ainda que não se lembre deles constantemente: o primeiro beijo, o primeiro emprego, a primeira vez, o primeiro filho, o primeiro crime.  Difícil é fugir da constante lembrança da primeira solitária.

Na cadeia, existem dois tipos de detentos: os que já são culpados e os que em breve o serão. Sim, porque entre as grades, ainda que a inocência seja genuína, ela logo empalidece e cai morta, pelo bem da vida de quem a carrega. Inocência e sobrevivência só rimam em livreto de infantário. Agora, qual a minha categoria? Não faz diferença, com o tempo, todo mundo se fazia igual. Se bem que tudo numa cadeia é questão de tempo, e por conseqüência, de dinheiro, maldito Franklin. Só que aqui sobra um e falta o outro, é sempre assim. Quem tem a grana em pouco tempo vai-se embora, ou dentro no carro do advogado ou no saco do IML. Quem tem o tempo, pouca grana lhe resta, você não faz idéia de quanta dívida a gente contrai quando está em cana. Mais até do que esses vírus todos que circulam de graça de homem em homem.

Mas o ruim da primeira solitária é que a gente nunca sabe quanto tempo dura. E ela sempre vem nos primeiros dias, quando você ainda não confia em ninguém nem ninguém em você. Tudo o que a gente ouve dizer soa a trote de calouro, ainda mais porque ficar sozinho num canto escuro não parece ser tão difícil pra quem tem a alma solitária e morcegal.

Se dizem que a cadeia é a sala de espera do inferno, a solitária é o despacho.

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Acostumar-se com a escuridão não custa tanto. Qualquer pessoa consegue logo nos primeiros dez minutos, mas demora meia hora pra adaptação completa. É claro que existem aquelas técnicas de usar visão periférica, apertar os olhos com a mão por dez segundos, essas coisas todas que ajudam a ver melhor no escuro, mas isso não interessa tanto.  O que dá mais agonia é se perder no tempo, dá pra endoidar o sujeito. Na solitária, o dia não dura 24 horas, dura o tanto que determinam que a gente fique lá. Ainda que você saia e só volte onze meses depois, quando entra de novo, parece que você só tirou a folga do almoço pra voltar pra lá. Todos são um só e o mesmo dia. Os espertos aproveitam pra ficar mais fortes, fazem flexão, abdominal e o caramba, pra cansar bastante o corpo e deixar o sono pesado, faz passar mais rápido. Mas até os mais espertos cansam. E se desesperam. Já te disseram das mirabolantes tentativas de suicídio? Ainda bem. Foi lá que eu entendi que um dia é como mil anos e mil anos são como um dia. Quem passou pela solitária tem mais noção de eternidade do que qualquer capelão seria capaz. E ela é perigosa.

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Olha as marcas na parede. Frangote sente até medo quando entra. Aquelas, onde tem 1 1 11 eu que fiz. É que quando a gente está na cadeia, o mundo da gente vai diminuindo, diminuindo, até que se resume só nisso, nesses códigos bestas que só a gente entende. É preciso muita força pra não esquecer quem a gente é de verdade. Metem a gente nessa gaiola com nome de ladrão, assassino, o que for. É, isso a gente acaba sendo mesmo se não fosse quando chegou aqui. Mas esquecem que a gente tem uma mulher que ama mais do que a própria vida, uma mãe que só não morreu de desgosto porque o pai teve alta do hospital três dias depois do julgamento. Nunca mais vi nenhum deles. Fiz até faculdade, acredita? De nutrição. Queria trabalhar numa academia, mas na escola de grã-fino pagava melhor. Agora, se pegar numa caneta não sei mais nem dar pingo em i. Por mais que a cabeça seja forte, o tempo é muito grande. As barras de ferro viram parte da sua costela, quando você se dá conta, você não é mais presidiário, você é a própria prisão. Podem te tirar daqui um dia, mas você vai estar sempre enclausurado.  

Cada tracinho daqueles é o conjunto de dez anos. Se eu marcasse os dias de cárcere não ia ter parede que chegasse. Trinta e um anos não é pra qualquer um, tem gente que nem chega a fazer essa idade. Eu não deveria ter marcado o último traço, mas, como já falei, um dia é mil anos, e aquele último ano foi como dez deles. Nem sei quantas vezes vim parar nessa saletinha fedida naquela época, nem ligava mais.

Ainda bem que vão implodir essa pocilga. Dentro de mim ela já está implodida faz tempo. Pena é que os escombros são pesados demais.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi Manu, muito obrigado pela sua participação no Duelo.
Estou lá há 3 anos e poucas vezes vejo uma primeira tentativa dar certo.
Seja bem-vinda e participe sempre.

Carolina Lima disse...

Manuzita, amo de paixão as coisas que você escreve, me arrebatam sempre!

Fiz um blog para mim também e coloquei os seus na minha lista de favoritos, ok?

Se quiser me visitar vá em http://escriturasdeprazer.blogspot.com/

Bjus, Carol

Diario de Bicicleta Brasil disse...

Oi Manu.. Num sabia que vc tinha sido presa hehe

A perfeiçao com q vc escreve e a capacidade de incorporar o personam e passar os sentimentos dá vida à história. Não eh de se admirar se alguem achar que a história vem de um ex-detento...
Parece que vc foi presa! kkk


Beijos minha querida. Vc estreve realmente muito bem. Nao deixa nada a desejar frente a uma grande profissional

Fico orgulhoso da minha pequena Manu... cresceu e eu nem vi kkk
BEIJOSS