domingo, 19 de dezembro de 2010

O estrado


Não se ouvia o barulho do relógio, a pilha havia acabado e não havia dinheiro para comprar novas. Era fim de madrugada. De um lado da janela, o sol já começava sua aparição apoteótica, indiferente às dores e insônias dos homens. Do outro, Amália tirava da testa alguns fios de cabelo bagunçados durante sua atividade noturna.

Fazia um frio leve, natural de todo amanhecer. Ela tinha a pele arrepiada, mas não sentia vontade de se agasalhar. A claridade vinda de fora já  deixava visíveis os móveis do quarto: a escrivaninha, os criados-mudos, a cama, o estrado do bercinho, a cadeira em que estava sentada. Sem pensar nem sentir nada, Amália pousou a mão sobre o ventre oco.

Olhava o marido deitado na cama. A musculatura de suas costas sempre produzia nela pensamentos não muito católicos. Suspirou, baixando os olhos e apoiando a cabeça no joelho esquerdo. Enquanto uma mão balançava com habilidade o toco de lápis entre os dedos, a outra deixou o ventre para se esconder na nuca. O calor dos cabelos compridos aquecia melhor do que as luvas que já não tinha.

Lamentava ser jovem. Ficou a pensar nisso por um tempo e em seguida escreveu: “é chegada a hora.” Parou. Antes de continuar, olhou uma última vez para o marido, para ter certeza de que não se arrependeria do que escreveria a seguir. Não saberia dizer por quanto tempo ficou assim. Fato é que um movimento brusco interrompeu sua meditação: retomou a escrita vorazmente, vestiu o casaco e pôs-se porta a fora, sem olhar pra trás.

A afobação de sua saída fez Edson levantar-se da cama, mas não a tempo de alcançá-la ainda em casa, e de propósito. Ele estivera acordado o tempo todo, atento a cada som que ela produzia durante sua noite em claro. Ainda assim ficou surpreso ao encontrar o berço desmontado. Como ela conseguiu fazer aquilo no escuro e tão silenciosamente?

Abriu a janela e foi olhar de perto o estrado. Havia marcas na madeira. Por um lado, ficou aliviado por ela ter feito tudo aquilo à noite, assim poupou os olhos do que saturava o coração. Mas também se sentiu cruel por ter se omitido tão vergonhosamente em um momento tão delicado para a esposa, mas ele tinha justificativas plausíveis. Aliás, viviam uma situação em que ninguém poderia reclamar inocência nem apontar o erro do outro. Por isso é que há pouco mais de uma semana não trocavam uma palavra. Dor por dor, cada um carregava a sua até o momento em que um dos dois tombasse ante o peso insuportável da parcela de culpa que lhe cabia.

Mal terminara o raciocínio, Edson sentiu um terror tomar conta de si. Afinal, aonde ela foi? Pulou por cima da cama, abriu o armário e enfiou o primeiro par de roupas que encontrou, nem conseguia acertar o fecho da camisa. Calçou os sapatos sem meia mesmo, e já ia trancando a porta quando lembrou que havia deixado os documentos em cima da escrivaninha, e no contexto político que viviam, sair sem identificação era a desculpa que o governo precisava para fazer o que bem quisesse com quem quer que fosse. Amália, meu Deus, ela levou os documentos? Saiu tão apressada... Nem quis pensar. Entrou o mais rápido que pôde e foi para o quarto.

Bem ao lado de sua carteira, havia uma nota fiscal de supermercado, datada de quatro dias atrás. Em cima da nota, estava a aliança de Amália. Dessa vez ele quis, mas não conseguia pensar. Era típico dela deixar mensagens cifradas espalhadas pelo caminho, mas dessa vez, parecia bem explícito. Não sabia o que fazer. Calma, calma, pensa. Respira e pensa.

Sentou-se na cadeira para tentar domar o caos repentino que o engolia. Observou a escrivaninha. Havia lá sua carteira, a nota fiscal, a aliança de Amália, o relógio parado, migalhas de pão e... o toco de lápis.

Com o coração aos pulos, pôs a aliança no bolso e pegou a nota fiscal, virando-a do outro lado. Viu que a letra de Amália estava pequena, tombada de lado e apressada. O grafite partido fez com que as palavras fossem escritas com linha dupla. Não havia rasuras. Olhou para o chão e viu papéis amassados, mas cumpriu a promessa de nunca desdobrar os rascunhos dela. Fosse o que fosse aquele escrito, era definitivo. Controlando a respiração, leu em silêncio o verso de um papel que um dia atrás era tão insignificante.


É chegada a hora.
É preciso que sejamos fortes.

Conceda-me Deus a graça, se assim Ele quiser,
De que, ainda que as forças te abandonem,
Sejas tu um homem,
Pois eu sou tua mulher.

Nem precisou pensar. Saiu de casa como um gato selvagem, correndo para a praia onde ela lhe havia dito sim.

Um comentário:

Diario de Bicicleta Brasil disse...

Manu... Seus textos são demais!
Tenho a impressao de que vc cria toda uma história, todo um contexto, toda uma época, para registrar apenas pequenas fraçoes de tudo isso, por isso tanta perfeiçao.

Vem-me a ideia de que vc cria um mundo com vários personagens que já vivem nele a meses. Entao, vc aparece com uma tesoura e recortar apenas um pedacinha desse mundo imenso, só uma fraçãozinha dele e entao o repassa para "O estrado".

Uma verdadeira escritora