Dizem que, quando a Terra era sem forma e vazia, o Espírito de Deus se
movia sobre a face das águas. Devia ser por isso que a cidade era tão maldita; era
desfigurada e lacunosa, mas não havia uma mísera gota d’água em que pudesse
dançar o Espírito.
Os que se lembravam da última chuva eram raros e caducos pela
senilidade. Os meninos em idade escolar não tinham imaginação que chegasse para
acreditar na idéia absurda de água cair do céu, ainda mais de graça. Os homens,
economizando até saliva, jamais saíam às conversas na rua - pelo olhar se
entendiam, desentendiam, faziam crianças e matavam rivais. Aliás, era com o
sangue derramado por esses homens que a terra se saciava, bastava olhar a
cidade em sépia e o tom avermelhado da poeira nas botas dos transeuntes.
Houve nessa terra um homem e sua filha. De sua mulher nada se sabia,
mas o fato era que a velha do chalé fazia o papel de mãe da menina enquanto Fabrício
estava no trabalho. Ele tinha uma profissão um tanto curiosa pra um deserto como
aquele: era escavador de poços profundos. Não de poços artesianos, essas eram escavações
inúteis, não havia água que prestasse na cidade, e a culpa era toda de todos. A
maldade do lugar era tão grande que sua imundície contaminou o solo e enegreceu
a água dos lençóis, deixou-a como grude, com gosto de piche e potável apenas
para ser bebida pelo fogo ardente. Os suíços conseguiam fazer muito dinheiro
com ela, mas não Fabrício. Nem os operadores das máquinas, nem a velha do
chalé.
Foi num dia de verão, com a terra enfumaçada de poeira, miragem e
fuligem, que aconteceu aquilo. O calor excessivo e a garganta seca daquele
meio-dia calaram a voz dos que o julgavam inocente e perturbaram o juízo de
quem o considerava culpado, não sobrou ninguém na rua a ver o desfecho da
história. Na verdade, eram todos cúmplices, nenhuma terra seca é inocente.
Quando ela racha, é porque os corações dos homens já empedraram, como um seio farto
que se recusa a saciar o filho faminto.
Fabrício. Imóvel, insensível, incomunicável. Sua filha, com tranças e
merenda a caminho da escola, antes de atravessar a rua olhou para os dois
lados, estacou quando olhou pra frente.
***
A sombra da menina já assumia um contorno delgado e comprido, e de
nenhum outro movimento foi capaz até que as pernas dobradas deixassem de
sentir. Foi quando uma lagrimazinha escapuliu pelo rosto. Não sabia o que
estava acontecendo. Assustou-se, tremeu. Quis se levantar mas não tinha forças
nos joelhos. A lágrima foi desenhando um caminho tortuoso pela face empoeirada,
enquanto seus olhos se arregalavam e as mãos, sujas e perdidas, não sabiam se
continham o avanço da lágrima audaciosa ou se tentariam erguer o corpo do chão.
Fez um malabarismo qualquer com os olhos para enxergar a lágrima que
passava pela bochecha. O que era aquilo? Era... era água. Água limpa. Transparente.
Água pura. E já pendia na ponta do nariz.
Água.
As mãos descobriram o que fazer, mas antes que se movessem, a lágrima
desprendeu-se. Avidamente, olhou pra terra embaixo de si, mas a lágrima não
havia chegado, evaporou antes de atingir o solo.
Se aquilo era água, ela poderia... As mãos nervosamente puseram-se a friccionar
as pernas, tentando instintivamente fazer o sangue a circular. Tentou reunir
todas as suas dores e lembranças, esfregando as pernas, com força. O pai morto
à sua frente, a mãe desconhecida, a fricção nas pernas. Ela, pequenina, tinha
nos olhos o olho d’água que a terra não tinha. Esmurrava as pernas. A solução e
a dissolução de tudo, a fricção nas pernas,- bem ali em seus olhos. Doíam-lhe
as pernas. Será que os olhos do pai ainda brilhavam atrás das pálpebras? Não
demorou, tinha as vistas embaçadas e em pouco tempo, chorava. Seria ela a fonte
que refrescaria aquela terra maldita?
Seu corpo tremia de choro, engasgava-se. Chorava por todos os poros.
Chorava tanto e tão instensamente, que até a boca chorava, o nariz, a palma das
mãos. Começou a sentir as pernas, e frio. Soluçava. Deu um grito. E mais água
corria. No chão se formava uma tímida poça. O frio aumentava, teve a sensação
de que até seu sangue agora era água pura. Perdeu o controle dos braços.
Chorava com todas as forças, soluçava e de vez em quando sorria.
A velha do chalé assistiu longamente a cena, desde o começo, sentada
no meio-fio. Ao ver o corpinho miúdo tombar no chão, falou de si pra si: “será
que é agora que o Espírito de Deus vem aqui?”. Tendo dito isso, olhou para o
céu. Mas a catarata não a deixou enxergar muito longe.
3 comentários:
Nao entendi =/
A menina morreu? A água era o sangue dela, mas como que ela confundiu? To curioso!!!!! Me explica =)
Espere e verás... ;)
kk, nao precisa, a Ju ja me explicou. Estamos lendo seus textos e fazendo altas discussoes literarias sobre eles e seu jeito de escrever!
To espalhando seu blog pra geral hehe
Eu fiz outro, www.cielchouette.blogspot.com
ele tá uma cópia do seu hehehe
beijos querida, gostei do twitter
bjs
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