segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Casa Torta

- Traz o cobertor, filha, está ali em cima do baú.
A garotinha, com pijama de flanela e tranças que facilitavam o pentear do cabelo na manhã seguinte, foi pisando as meias por cima dos brinquedos espalhados pelo pequenino quarto de dormir. No caminho de volta à cama, Carolina parou em frente à estante baixa. Agachou-se a admirar a lombada dos gigantescos livros infantis que não sabia ler ainda.
- Quer que eu conte uma história pra você, Carol?
Carolina olhou a mãe lentamente. Virou-se uma vez mais para os livros e escolheu um de capa amarela.
- Hoje eu que vou ler pra senhora dormir. Mas é pra dormir, tá bem?
- Sim, senhora, mocinha - retrucou a mãe bem-humorada, ajeitando o travesseiro da menina. E por que você escolheu essa história?
- Por que eu gosto desse cheiro, ó. - Dizendo isso, enfiou a gravura emborrachada da capa debaixo do nariz da mãe, tentando fazer cosquinha*. - Agora deixa eu te cobrir. Pronto, fecha os olhinhos pra imaginar melhor.
A mãe tinha muito prazer em ver a filha imitar seus gestos. Nessas horas tinha impressão de que a educação da menina não ia tão mal como seu pânico de tempos atrás previa. Solange fechou os olhos e esperou. Esperou. E estranhou.
- Ué, cadê a história, Carol?
A menina olhava o livro aberto com muita preocupação.
- Mãe... isso aqui está errado.
- O quê?
- Isso tudo...!
Os braços magrinhos se erguiam no ar como se fossem de uma matrona italiana. A mãe sentou-se na cama, curiosa, e trouxe a filha pra perto.
- Espera, vamos ver. O que é "isso tudo"?
- Esse livro é meu, não é?
- É.
- Então por que ele tá todo escrito se eu não sei ler? Era pra ser sem palavras, só com as figurinhas... E agora, como vou te contar a história?
A mãe sentiu orgulho, sabe-se lá por quê. E o avô, na quinta-feira, adoraria saber dessa façanha.
- É porque quem escreveu esse livro sabia que a mamãe ia estar aqui pra ler pra você. Quando você aprender a ler, poderá ler sozinha, é só esperar, meu amor.
A menina não parecia muito convencida. Fechou o livro e abandonou-o em seu próprio colo. O dedinho passeava desconsolado e lento pelo alto relevo do emborrachado. Solange esperava que Carolina rompesse seu próprio silêncio, até que o rompante veio.
- Eu não gostei dessa casa, mãe.
O semblante da mãe transfigurou-se de tristeza. A viuvez era muito difícil e ela não sabia até que ponto Carolina compreendia o sentido da morte, menos ainda a necessidade da mãe em sair da casa onde foram tão felizes eles três, agora apenas elas duas. A inocência da filha diante de uma situação tão trágica dilacrava seu coração.

- Ah, Carolita... - Levou a filha ao colo, com livro e tudo. - Você talvez seja muito pequena pra compreender certas escolhas que os adultos têm que fazer. É que depois que... aconteceu aquele passeio, mamãe encontrou essa casa aqui, que é mais perto da sua escola. Não é melhor?

Carolina, não se sabe se por dissimulação ou inocência, esperou ainda alguns segundos pra retrucar:
- Não, mãe, não é dessa daqui, é essa do livro.
A mãe até deixou o braço cair pra descontrair os músculos tão tensos.
- O que há de errado nela?
- Ela é torta. E usa chapéu.
A mãe riu-se de leve. De alívio.
- E por que as casas não podem usar chapéu?
- Podem, mas só se elas forem carecas igual o tio Fernando, pra se proteger do sol e não queimar os miolos.

O papo havia voltado ao normal. Carol recomeçava as tautologias da família e dava sua risada gostosa e com os primeiros indícios de sono.
- Mamãe pode então contar a história pra você?
- A gente conta junto, então, mamãe. A senhora fala do que está escrito e eu da figurinha.

Começaram a contar a história mista. A mãe ficou com a narração e Carol com as falas inventadas, o que fazia que cada página levasse ao menos cinco minutos de leitura. Na quarta página, quando Carol já piscava com mais demora que o habitual, a mãe começou a escorregar a menina para a cama, disfarçadamente, para que ela não perdesse o clima nem o sono. Sem perceber, Carol ia se deixando adormecer e passou os olhos mal conscientes pela capa do livro. A mãe deixou o último gancho narrativo pra ver se a menina ainda estava acordada. Foi quando ela proferiu as últimas falas da noite.

- Aí o Frederico disse: "Eu não gosto dessa casa, mamãe". E a mamãe respondeu: "Mas nessa casa tem um carro que voa, você não gosta dele?"
A mãe tentou articular alguma narração pra que ela dormisse logo, mas o coração ficou aos pulos de repente. Carol bocejou longamente.
- Aí o Frederico respondeu - deu outro bocejo ainda maior - todo sorridente: "Quero, quero! Assim a gente vai poder visitar o papai, lá no céu!"

Carolina tombou pra um lado e dormiu pesadamente. Solange tombou pro outro e levemente chorou.

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