Houve um tempo em que esta era uma terra cheia de maldade, e as pessoas
que tinham sonhos eram vistas como tolas, ingênuas, verdadeiras pobres
coitadas. Nesse tempo houve uma menina que vivia rodeada por seus
sonhos, e eles eram muitos, pequenos e barulhentos como um enxame de
moscas berneiras.
Mesmo cheia de maldade, havia ainda naquela terra muito boa gente, que
de pronto se compadeceu da menina. E foi assim, movida por grande
compaixão, que toda aquela boa gente empreendeu a primeira grande caçada
ao enxame de sonhos berneiros. Afinal, a pobre a menina tão sozinha e
órfã não poderia ser ingênua numa terra tão cheia de maldade.
Tola e assustada, a menina fugiu para uma das curvas do mundo e ali, sem
escolha, aconchegou seus sonhos num cantinho bem escondido da alma,
naquele lugar que só Um conhece. Cobriu-os com uma esperança bem fresca e
cantou durmam, durmam, sonhos meus/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso vocês podem descansar para os fazer dormir.
A boa gente, ávida por socorrê-la, de tanto procurar conseguiu
encontrá-la, toda dessonhada e desrumada, na árida vereda da curva sem
fim. Sem fazer perguntas (era uma gente compassiva), levaram-na de volta
àquela terra cheia de maldade que afinal era seu lar. Viram pelos
buracos visíveis em sua alma que os sonhos berneiros se haviam
enveredado por outros zumbidos. E a boa gente sorriu aliviada.
Mas a compaixão silente durou pouco. No cair da noite a menina -
gentilmente carregada em braços tão compassivos - olhou para o céu a ver
se encontrava qualquer estrela que lhe testemunhasse uma faísca da
Grande Luz. Imediatamente, a boa gente nada ingênua deu-se conta da
farsa, ela continuava a mesma tola de sempre, pois só pobres sonhadores
berneiros vêem como luz as toscas cabeças de alfinete que pregam a noite
no céu.
E a terra tão cheia de maldade começou a segunda caçada aos sonhos da
menina. Escarafuncharam com dentes, canivetes e nenhuma anestesia cada
pedaço de sua alma furada à procura das larvas deixadas por aquelas
extirpáveis moscas berneiras. Não que não importasse se a pequenina
ficasse em frangalhos, era apenas uma medida drástica para uma situação
de emergência, depois de curada a menina agradeceria por tão grande
compaixão. Impossibilitados de encontrar algum vestígio, cuidadosamente
deitaram a menina numa caminha, para que descansasse enquanto não
chegasse o especialista vindo da Terra Perversa para a analisar com mais
perícia seu grave estado. Só não cantaram pra ela dormir.
Sem canção que a embalasse, a menina lembrou-se de que havia ainda um
último lugar onde poderia se esconder daquela boa gente que a mantinha
refém de tão grande compaixão. Cuidadosamente, revirou os entulhos no
canto da cela, digo, sala, onde puseram os pedaços partidos de sua alma.
As mãos suavizadas encontraram, enfim, um cantinho bem escondido,
aquele lugar que só Um conhece, excelente refúgio para que se escondesse
do perito iminente.
Tentou entrar, mas seus sonhos estavam muito maiores do que quando os
pusera ali. Tentou acordá-los à força, entretanto, por ser tola, não
sabia que apenas o som mais breve e cortante do mundo é capaz de
despertar um sonho adormecido. Enfraquecida, deixou-se cair diante do
cantinho bem escondido da alma e pensou que acabou-se tudo, parto mas meus sonhos ficam. Ainda bem que há ao menos Um que sabe onde eles estão e pode cuidar deles por mim, e chorou.
Toda lágrima despregante dos olhos, não importa se é doce ou amarga, faz
a gente sentir um calorzinho quando ela nos toca a pele. Mas é porque
somos humanos que chamamos de calor o que um sonho chama de som. Então
se deu a alvorada dos sonhos dormentes.
Ao ver a menina triste e sem forças diante de seu refúgio, os sonhos
foram saindo, um a um, rodeando-a, como no dia de suas infâncias. Com os
olhos turvos de desconsolo, a menina não pôde discernir quem
são?Ah! São as boas pessoas que por compaixão me arrancarão o que resta
da alma pra que eu não mais sofra nessa terra tão cheia de maldade. De fraqueza, tombou nos braços verdadeiramente compassivos.
A pequenina fatigada foi conduzida a um cantinho bem escondido da alma,
naquele lugar que só Um conhece. Seus sonhos aconchegaram-na ali,
cobriram-na com amor bem quente e cantaram durma, durma, minha menina/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso você pode descansar para a fazer dormir. Reuniram todos os entulhos partidos e partiram para uma das curvas do mundo.
A terra continuava cheia de maldade, e iniciou-se a terceira grande
caçada, para exterminar os monstros que capturaram a protegida de todas
as gentes. Alcançaram-nos. O desfecho não foi tão agradável. Os sonhos
mais frágeis desapareceram, alguns se converteram em ilusão para
sobreviver, outros simplesmente não quiseram suportar a guerra que se
mostrava perdida. Foi uma longa caçada, que durou três anos sem
pôr-do-sol. Enquanto isso, a menina tola pôde recuperar as suas forças e
construir novos sonhos enquanto os mais valentes morriam um por um em
sua defesa. A caçada fez a menina amadurecer, deu-lhe a forma e a
matéria necessária para construir sonhos encouraçados. Dotou-os de asas,
ensinou-lhes o silêncio, revestiu-os com disfarces castanhos e pôs
neles uma faísca da Grande Luz. Terminada a guerra, ao tombar do
derradeiro sonho antigo, a menina saiu restaurada de seu refúgio,
libertando os novos sonhos no moinho de encontro dos quatro ventos.
Foi assim que nasceram os pirilampos.
quinta-feira, 16 de junho de 2011
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