quinta-feira, 16 de junho de 2011

A menina dessonhada | Contos da Terra Má

Houve um tempo em que esta era uma terra cheia de maldade, e as pessoas que tinham sonhos eram vistas como tolas, ingênuas, verdadeiras pobres coitadas. Nesse tempo houve uma menina que vivia rodeada por seus sonhos, e eles eram muitos, pequenos e barulhentos como um enxame de moscas berneiras.

Mesmo cheia de maldade, havia ainda naquela terra muito boa gente, que de pronto se compadeceu da menina. E foi assim, movida por grande compaixão, que toda aquela boa gente empreendeu a primeira grande caçada ao enxame de sonhos berneiros. Afinal, a pobre a menina tão sozinha e órfã não poderia ser ingênua numa terra tão cheia de maldade.

Tola e assustada, a menina fugiu para uma das curvas do mundo e ali, sem escolha, aconchegou seus sonhos num cantinho bem escondido da alma, naquele lugar que só Um conhece. Cobriu-os com uma esperança bem fresca e cantou durmam, durmam, sonhos meus/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso vocês podem descansar para os fazer dormir.

A boa gente, ávida por socorrê-la, de tanto procurar conseguiu encontrá-la, toda dessonhada e desrumada, na árida vereda da curva sem fim. Sem fazer perguntas (era uma gente compassiva), levaram-na de volta àquela terra cheia de maldade que afinal era seu lar. Viram pelos buracos visíveis em sua alma que os sonhos berneiros se haviam enveredado por outros zumbidos. E a boa gente sorriu aliviada.

Mas a compaixão silente durou pouco. No cair da noite a menina - gentilmente carregada em braços tão compassivos - olhou para o céu a ver se encontrava qualquer estrela que lhe testemunhasse uma faísca da Grande Luz. Imediatamente, a boa gente nada ingênua deu-se conta da farsa, ela continuava a mesma tola de sempre, pois só pobres sonhadores berneiros vêem como luz as toscas cabeças de alfinete que pregam a noite no céu.

E a terra tão cheia de maldade começou a segunda caçada aos sonhos da menina. Escarafuncharam com dentes, canivetes e nenhuma anestesia cada pedaço de sua alma furada à procura das larvas deixadas por aquelas extirpáveis moscas berneiras. Não que não importasse se a pequenina ficasse em frangalhos, era apenas uma medida drástica para uma situação de emergência, depois de curada a menina agradeceria por tão grande compaixão. Impossibilitados de encontrar algum vestígio, cuidadosamente deitaram a menina numa caminha, para que descansasse enquanto não chegasse o especialista vindo da Terra Perversa para a analisar com mais perícia seu grave estado. Só não cantaram pra ela dormir.

Sem canção que a embalasse, a menina lembrou-se de que havia ainda um último lugar onde poderia se esconder daquela boa gente que a mantinha refém de tão grande compaixão. Cuidadosamente, revirou os entulhos no canto da cela, digo, sala, onde puseram os pedaços partidos de sua alma. As mãos suavizadas encontraram, enfim, um cantinho bem escondido, aquele lugar que só Um conhece, excelente refúgio para que se escondesse do perito iminente.

Tentou entrar, mas seus sonhos estavam muito maiores do que quando os pusera ali. Tentou acordá-los à força, entretanto, por ser tola, não sabia que apenas o som mais breve e cortante do mundo é capaz de despertar um sonho adormecido. Enfraquecida, deixou-se cair diante do cantinho bem escondido da alma e pensou que acabou-se tudo, parto mas meus sonhos ficam. Ainda bem que há ao menos Um que sabe onde eles estão e pode cuidar deles por mim, e chorou.

Toda lágrima despregante dos olhos, não importa se é doce ou amarga, faz a gente sentir um calorzinho quando ela nos toca a pele. Mas é porque somos humanos que chamamos de calor o que um sonho chama de som. Então se deu a alvorada dos sonhos dormentes.

Ao ver a menina triste e sem forças diante de seu refúgio, os sonhos foram saindo, um a um, rodeando-a, como no dia de suas infâncias. Com os olhos turvos de desconsolo, a menina não pôde discernir quem são?Ah! São as boas pessoas que por compaixão me arrancarão o que resta da alma pra que eu não mais sofra nessa terra tão cheia de maldade. De fraqueza, tombou nos braços verdadeiramente compassivos.

A pequenina fatigada foi conduzida a um cantinho bem escondido da alma, naquele lugar que só Um conhece. Seus sonhos aconchegaram-na ali, cobriram-na com amor bem quente e cantaram durma, durma, minha menina/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso você pode descansar para a fazer dormir. Reuniram todos os entulhos partidos e partiram para uma das curvas do mundo.

A terra continuava cheia de maldade, e iniciou-se a terceira grande caçada, para exterminar os monstros que capturaram a protegida de todas as gentes. Alcançaram-nos. O desfecho não foi tão agradável. Os sonhos mais frágeis desapareceram, alguns se converteram em ilusão para sobreviver, outros simplesmente não quiseram suportar a guerra que se mostrava perdida. Foi uma longa caçada, que durou três anos sem pôr-do-sol. Enquanto isso, a menina tola pôde recuperar as suas forças e construir novos sonhos enquanto os mais valentes morriam um por um em sua defesa. A caçada fez a menina amadurecer, deu-lhe a forma e a matéria necessária para construir sonhos encouraçados. Dotou-os de asas, ensinou-lhes o silêncio, revestiu-os com disfarces castanhos e pôs neles uma faísca da Grande Luz. Terminada a guerra, ao tombar do derradeiro sonho antigo, a menina saiu restaurada de seu refúgio, libertando os novos sonhos no moinho de encontro dos quatro ventos.

Foi assim que nasceram os pirilampos.

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