sábado, 20 de novembro de 2010

A irmã muda

O portão de casa já ganhava cores alaranjadas em sua superfície, e começava a soltar lascas na mão de quem o tocasse. Débora não reparou nisso até aquele dia, quando ao abri-lo, a falta de óleo nas juntas fez da fricção do metal um som estridente, que arranhou os ouvidos e arrepiou os ossos. Largou o portão e levou a mão às orelhas, para se recompor, e então viu a ferrugem nas dobras de suas palmas. Limpou-se na blusa e foi caminhando esfomeada em direção à varanda. O portão continuou aberto.

O cheiro de comida que sempre a aguardava na volta da escola pairava no ar, mas dessa vez, empestado de fumaça. Em um tom bem humorado, começou a falar alto desde a sala, para que sua voz a precedesse na cozinha.

- Não acredito que a mãe deixou a comida queimar. Não tem vergonha disso, dona Raquel?

Chegando à cozinha, parou de súbito à porta. Fora surpreendida pela cena que a aguardava.

- Gente, o que é isso? O que está acontecendo?

Silêncio. A mãe pôs uma mecha de cabelo atrás da orelha.

- Ei, vocês estão me ouvindo? Que caras são essas? Onde está o meu irmão?

Novamente, só o eco de suas palavras respondeu.

- Pai, diz alguma coisa! Vocês estão me deixando angustiada!
- O José está na fábrica, ainda não chegou. Está tudo bem, filha.
- Como pode dizer que está tudo bem? Vocês já se olharam? A mãe até queimou a comida... O que está acontecendo? Digam, por favor!

Os pais, que até então mantinham os olhos baixos, vagarosamente dirigiam o olhar para Débora, mas já sabiam o que encontrariam em seu no rosto. Entretanto, no demorado trajeto de suas vistas, o mover de uma cadeira vazia deu alguma vivacidade a seus movimentos. Débora também olhou rapidamente para a cadeira, franzindo as sobrancelhas. Qual não foi a surpresa dos pais ao ver Ana ali, embaixo do assento, encolhida, com os olhos muito abertos e nenhuma expressão no rosto.

- Meu Deus, Ana, há quanto tempo você está aí? Será que ela ouviu nossa conversa, Daniel?
- Que conversa, mãe? De que vocês estão falando? Pai, me diz alguma coisa!! - Débora começava a sentir desespero, uma certa histeria já dominava o tom de sua voz.
- Filha, controle-se, não grite. Vai assustar a Ana.
- Ela é surda, pai!! Ela não ouviu conversa nenhuma, ela não escuta meus gritos, ela não entende nada, é só uma criança!!! Pelo amor de Deus, alguém me diz alguma coisa?!?!

Nesse ponto, a súplica se tinha convertido em choro contido. Débora começava a tremer. Mais uma vez, o silêncio.

- Daniel, fala pra ela de uma vez - foi a voz serena e quase sussurrada da mãe que rompeu a tensão do ambiente. Ana tinha os olhos ainda mais abertos.

O pai tirou a mão da testa, escorregando-a pelos olhos, descendo pelo nariz, encostando à boca, deslizando pela barba, até parar no pescoço, como se estivesse ele mesmo se degolando. Mas não punha força nas mãos porque não a tinha. Uma extrema fraqueza se apoderara de Daniel, e seus olhos vazios denunciavam isso. Ana mexeu-se silenciosamente debaixo da cadeira.

- Pai, por favor...

Débora tinha todos os músculos contraídos. O tremor já havia passado, mas a vibração incontrolável permanecia por dentro, lá no estômago, talvez.

- Débora - suspirou o pai, procurando as palavras no olhar perdido. - Vamos ter que fazer o que mais temíamos.
- Mas o quê, pai? A gente teme tanta coisa... Por favor, diga logo. Já tenho 17 anos, posso suportar. Por favor...

Daniel desfalecia cada vez mais. Tornara-se pálido. A mãe praticamente não estava ali, escutava a conversa sem nada ouvir, seus pensamentos estavam mudos, mais mudos que a própria Ana. A diferença era que Ana não falava porque não conseguia imitar os sons que jamais havia ouvido; a mãe não falava porque não conseguia reproduzir as respostas que desconhecia. Talvez fosse melhor assim.

Foi então que Ana, num movimento brusco, saiu de baixo da cadeira, derrubando-a com muito estardalhaço. Colocou-se no meio da cozinha, mexia a boca e produzia sons guturais, contorcia-se, numa tentativa infértil de dizer à irmã o que se passava. O pai desviou o rosto, envergonhado. A mãe fechou os olhos, não queria sofrer ainda mais. Débora chorava descontroladamente, atônita.

Devido ao fracasso em tentar explicar à irmã o que se passava, Ana tomou Débora pela mão, puxou-a com toda a força em direção ao quintal. A moça não apresentava resistência.

A pequena, em seus passos curtos e firmes, caminhava sem uma direção clara, angustiando ainda mais a irmã, que a essa altura pensava que Ana estivesse com alguma crise nervosa. Um rádio foi ligado dentro de casa, e pouco depois, sem muita certeza, Ana parou, quase no limite da cerca do quintal. Soltou a mão de Débora, e com muita calma, ajoelhou-se na grama. Suas mãos delicadas e infantis iam ao encontro de um dente de leão, que com muito cuidado, arrancaram aquela flor felpuda do talo.

Débora secava as lágrimas. Já não chorava, apenas soluçava, observando intrigada a ação da irmã mais nova. Com olhos penetrantes, Ana pôs-se de pé e encarou Débora, colocando diante de si aquele dente de leão. Suas unhas estavam brancas, de tanta pressão que usava para segurar a planta entre os dedos. Esperou que o soluço de Débora passasse, sem desviar nem abrandar os olhos.

Ao sentir que a irmã estava pronta para receber a notícia, soprou suavemente o dente de leão. Mas só Débora pôde ouvir, lá de dentro de casa, o rádio anunciar entre ruídos que Hitler acabara de cruzar a fronteira.

Nenhum comentário: