quarta-feira, 27 de outubro de 2010

(Um sobre um homem em luto)

(De que de agora em diante, caso a tag não indique o oposto, todo texto publicado com alguma imagem fará parte do desafio literário - de que eu estou adorando participar.)

Uma cidade cinzenta, repleta de sorrisos monótonos se esgueirava entre os olhos de Gregório. Um gato parou para observá-lo. Um mendigo também. Ele andava como quem sonambula, adormecido na dor que, oposta ao tempo, nunca quis passar.

Gregório já não se lembrava dos pequenos detalhes da vida com ela, talvez nem mais o interessassem essas pequenices. Havia se entregado ao sofrimento e era essa a motivação de sua vida. Pouco importava o cheiro dos doces da padaria ao lado, muito menos o florido do vestido de uma menina ruiva que atravessava a rua segurando a boneca pelo calcanhar, enquanto seu desgrenhado cabelo sintético varria aos pulos a faixa de pedestres. Um pedreiro em jeans duros de cimento ressecado assoviava uma polka de sua juventude, lançando as colheradas de reboco na parede seguindo o ritmo que marcava com os pés. Gregório limitou-se a desviar do andaime, sem olhar pra cima.

Até que chegou àquele cruzamento. As nuvens faziam do asfalto uma palheta de luz e sombra, causando sucessivos arrepios de frio e incômodos de calor, mas ele sequer reparou que há duas semanas não chovia em Praga. E foi graças ao estio que Gregório escapou de ser encharcado pelo carro que, louco como qualquer veículo que ultrapassa um bonde e estaciona em seguida, descarregava apressado alguns quilos de carne de porco para um restaurante cujo dono era judeu.

Entrou no prédio ao lado, para chegar ao topo e ver aquele cruzamento do alto. O som de seus passos arrastados se fazia mudo só porque a melodia de um piano em andante maestoso ecoava pelas escadas, acompanhado pela voz firme da professora de balé. Não contou os degraus, mas chegando ao centésimo quinto, avistou uma claridade incerta e resolveu ir ao seu encontro. A luz vinha de uma janela estreita e alta, que dava acesso à fachada do edifício. Gregório, sem receio nem bravura, destravou o trinco e colocou-se fora. Por um instante, sentiu que alguma coisa tremia dentro do peito, e por baixo da pele, e entre os dedos. Olhou longamente aquele cruzamento. Foi ali que ele não teve tempo de despedir-se da mulher, que morreu atropelada com uma sacola de compras na mão.

Chegou-se mesmo à beira, deixando a ponta do sapato para fora do limiar. Então sentiu uma lágrima descer quente pelo rosto, seguida por outra e essa seguida por tantas outras. Já não sentia tremor, apenas a umidade das faces que já atingia a gola da camisa. Começou a não sentir os pés, nem o enxuto da calça, só um estranho jorro de água a molhar-lhe o corpo inteiro. Faltou-lhe ar. Instintivamente abriu a boca, mas a respiração ainda assim era pesada. Sentiu arderem-lhe as costas, contorceu-se todo o corpo, molhado, asfixiado, desesperançado. Então lembrou-se do sorriso que sua mulher lhe deu após o primeiro beijo trocado, bem ali, naquela esquina. A doçura da lembrança aprumou o corpo agonizante e aliviou o sofrimento do rosto. Com serenidade, ergueu-se, brando, como se avistasse um amor nascente alguns metros abaixo. Não sentia mais seu próprio corpo, muito menos as asas de que fora revestido. Foi assim que Gregório transformou-se na única gárgula humana de Praga. E voltou a chover sobre a cidade.

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