sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Das Mitocôndrias ou Teste de Maternidade

Quando eu estava na sétima série, meu professor de ciências disse que nós temos as mitocôndrias de nossas mães. Por mais absurdo que pareça - foi o termo que ele usou - se um dia precisarem fazer um teste de maternidade, é só comparar as mitocôndrias, não tem erro. Hoje essa história me parece uma invenção da minha cabeça, que é ótima para criar realidades passadas e acreditar nelas sinceramente. Só que, para não estragar a poesia da herança mitocondrial, nunca tive a curiosidade de saber se isso é verdade ou lembrança fantástica.

A despeito das mitocôndrias, finalmente admiti que a molécula de personalidade que me faz diferente de todos os outros seres humanos foi-me dada por meus pais. Quanto mais me abro para conhecê-los, mais vejo que estou neles e eles em mim. Foi há pouco tempo que reparei nisso, e nunca mais fui a mesma com aquela que concedeu respiração às minhas células.

Há algumas semanas eu estava na janela da copa. Sempre gostei de ficar olhando pela janela. Talvez seja parte do DNA Magalhães, essa vontade de esquadrinhar o mundo que fica do lado de fora até que seja possível dar-lhe a volta. Esse esquadrinhar é uma prática, até então inconsciente, da nossa família. Sempre que a casa fica em silêncio, instintivamente já sabemos onde procurar uns aos outros: na janela do meu quarto ou na janela da copa, com o cotovelo no mármore e a mão no queixo. Em dias de muita profundidade, é comum que um pé se apóie sobre o outro enquanto o joelho pressiona a parede, como se quisesse mandá-la para longe.

Minha mãe, seguindo os rogos do DNA que ela incorporou ao seu, foi à janela para conversar comigo. Não consigo me lembrar de nenhuma palavra que trocamos, a não ser de uma frase que me despertou o espírito depois de proferida: "Nós somos iguais, mãe". Todo mundo tem uma fase de conflitos na adolescência, eu, porém, adiei a minha pra depois da faculdade, quando meus argumentos e experiências seriam mais convincentes até para mim mesma. Foi no auge desse período que a frase "Nós somos iguais, mãe" escapoliu da minha boca. Eu não contava que a faculdade me deixasse mais sensível às pessoas, principalmente aos meus pais.

Depois dessa revelação inesperada, não consegui mais falar coisa alguma. Minha mãe ainda fez algumas considerações, mas eu não me pronunciei. Ali entendi porque tinha tantos conflitos com ela: nós éramos vetores iguais com direções opostas, por isso, não sairíamos nunca do lugar.

A partir daquele dia, comecei a prestar mais atenção na molécula de personalidade que diferenciava minha mãe de todas as outras. Quem diria, ao me abrir para minha mãe estava me reconciliando não só com ela, mas comigo mesma. Comecei a perceber que herdei muito mais que as mitocôndrias e a voz ao telefone, mais que o formato dos pés, a extroversão e o sorriso grande, mais que a risadinha safada de quem sabe que está errado e faz a bronca virar brincadeira. Vi que foi ela quem me ensinou a alegria com as coisas simples, a ponderação com defeitos alheios e o amor aos amigos que raia a incondicionalidade. As palavras que hoje posso ler foram contribuição do meu pai, mas a poesia que sacia a alma foi-me dada por ela, não com letras, mas com a vida. Minha mãe tem a poesia na alma, pena que ela não se dá conta disso.

Eu também não me dava conta da mãe que eu tinha até aquele dia, quando consegui ver que ela e eu fazemos parte de um todo indissolúvel. Não por obrigação do sangue, mas por clamor da alma. Quando me permiti enxergar minha mãe sem meus pré-conceitos de quem vive junto há mais de 20 anos, consegui perceber que a grande maioria das coisas que tenho orgulho de ser hoje vieram dela.

Benditas sejam as mitocôndrias e o Deus que as criou.

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