sábado, 28 de fevereiro de 2009

A mulher do sebo

Convencida por uma amiga de infância, resolvi começar a montar minha própria biblioteca antecipadamente. Assim como a chuva repentina é recebida por jornais e revistas em vez de sombrinhas, fui ao sebo me proteger dos primeiros pingos. Quando entrei, não havia ninguém, nem mesmo os funcionários. Coloquei minha mochila numa cadeira e comecei a expedição.

Como era a primeira vez que ia a um sebo com a real intenção de adquirir alguma coisa, ainda não sabia muito bem como funcionava a dinâmica do lugar. Entretanto, não tardou para que, sem querer, alguém me colocasse na dança.

Despreocupada, percorri as estantes para conhecer as divisões e apartir daí agilizar minha busca. Não demorou muito, senti um par de olhos sobre mim. Uma mulher, com uma blusa de onça, saia cigana e sandália romana me observava por trás da prateleira. Essa predadora estranhamente múltipla esperava o momento certo de atacar.

Me senti acuada, mas não me intimidei. Rapidamente passei os olhos pelos livros, observando e sendo observada. Não demorou muito e ficamos frente a frente, numa curva da estante, exatamente onde os livros deixavam de ser classificados por autor e começavam a ser ordenados por título. Esse é o ponto mais crítico. Nessa estante as amizades ficam em suspenso e qualquer simpatia finda. E o pior, anunciar o que se busca à vendedora é como colocar sangue em água de tubarão.

Por notar que eu estava em terreno desconhecido, a mulher contou certa vantagem, e me desprezou com os olhos. Ela não contava porém, que a criança que trazia ao lado denunciaria sua muda rivalidade com esta reles iniciante que vos escreve.

O garotinho, que parecia ter uns três anos, até então estava quieto, como se a ida ao sebo fosse apenas uma olhada na vitrine. O que o incomodava eram os solavancos que a mãe lhe dava enquanto ia de um lado a outro, com um olho em mim e outro nos livros. Eu não sabia que crianças suspiravcam de irritação, mas acabei descobrindo que isso é possível.

Para azar da mulher, a última gota de paciência daquela criança se foi no momento em que nos cruzamos. Para aumentar a ação cênica do desprezo à minha pessoa, quando o olhar da mulher saiu da minha cabeça e chegou aos meus pés, ela deu um puxão-mor naquele bracinho franzino, mencionando o afastamento que antecede o bote. O garoto, dando o tal suspiro impaciente, falou: "Mããããe, que livro você tá procurando? Anda loooogo, eu quero fazer xixiiiiii". Pronto, ele a comprometeu duplamente. Primeiro, por quase forçá-la a dizer o indizível, segundo, por apontar sua inficiência na caçada. Sem contar que o jogo oculto fora revelado por um desprezível desejo orgânico, tão incabível ao supra sumo do deleite intelectual.

Sem perder a pose de desprezo a mim dirigida, mas tendo revelado pelo canto da boca sua raiva contida pelo pequeno delator, a mulher desviou o assunto para os gibis que lá havia e ofereceu-lhe alguns. Nada como o velho truque do pão e circo. Soltou a mão da criança e agora estava livre para consumar seus intentos.

Diante da desmoralizada onça-cigana-romana, por completo descuido encontrei o livro que buscava. Não pude conter minha cara de surpresa, nem ela a de raiva. Mais tarde descobri que, não era a competição por um suposto livro em comum, mas o ato de encontrar primeiro a obra desejada que faria de uma de nós a grande vencedora. Sorte de iniciante, é o que deve ter pensado. Por desaforo do destino, em meu caminho até o caixa encontrei outro livro de meu interesse. Só tive tempo de vê-la dando o solavanco final na criança que olhava, com pernas cruzadas, a figura Chico Bento. Com um sorrisinho indiscreto, paguei pelos livros e fiz questão de não guardá-los na mochila. Acreditem se quiser, e dou minha palavra: quando saí do sebo, alguém na casa em frente solava o hino nacional num clarinete.

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