Nado no nada,
sempre sem pré.
Numa nuca nunca nua
penso, tão denso,
sem senso,
não tenso
nem tenci
o
no
rário
sexta-feira, 22 de abril de 2016
Coroação | Contos da Terra Má
Viva o rei! Viva!
Saudai o rei que vem e que outro tome o seu lugar!
Aproxima-se o cortejo, mulher, em si mesmo absorto,
Passa a esquina onde teu filho, dentre tantos, foi morto
Que grande peso d'ouro pisoteia sua memória!
Corre, veja aproximar-se quem apagará tua história.
Viva o rei! Viva!
Um brado jubiloso ao ordinário rei que vem!
Três bestas seladas conduzem outra mais feroz,
Todo o povo, por desprezo, ergue alto sua voz
E saúda, entrementes, entre dentes e escárnio
Mais um rei erigido, mais um ente perdulário.
Viva o rei! Viva!
Viva e goze da miséria que devora sua terra!
Este reino sem pão, sem salvação, deveras roto,
Bebe em honra ao rei chegado taças plenas de esgoto.
Banquetes no palácio, peste, pranto e dor nos lares:
Os desnudos tão honrados, os cobertos, tão vulgares.
Viva o rei! Viva!
Saudai o rei que vem e que outro tome o seu lugar!
terça-feira, 8 de maio de 2012
segunda-feira, 30 de abril de 2012
Despojo fosco
E quem deseja despojos foscos de uma realeza já há muito destronada?
Maltratos não sofreu, só foi largada à morte.
Dizem que resiste, dentes fracos e ossos fortes.
Se grita, ninguém sabe.
Se caminha, ninguém viu.
Se bate ninguém abre.
Se morreu, ninguém carpiu.
Sem dó nem elegia,
na rua, nua e só,
vive a sabedoria.
Maltratos não sofreu, só foi largada à morte.
Dizem que resiste, dentes fracos e ossos fortes.
Se grita, ninguém sabe.
Se caminha, ninguém viu.
Se bate ninguém abre.
Se morreu, ninguém carpiu.
Sem dó nem elegia,
na rua, nua e só,
vive a sabedoria.
quarta-feira, 4 de abril de 2012
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
Vôo em roda
Céu em bronze, vento em roda em torno dos cabelos de Felipa
e das fibras do capim. Os gritos da enfermeira já não se ouviam, tão distante
se pusera a menina. Sabia que só tinha mais poucos minutos até aquela mulher
desagradável alcançar-lhe os passos.
- Passarinhos, venham! A chuva vai cair tão forte e dura que
lhes arrebenta as asas em mil pedaços!
Felipa olhava para trás, segurando a tosse, acostumada que
estava em esconder os sintomas. Longe de sua vista, a enfermeira discutia com o
chofer, um pilantra que sempre aproveitava dias chuvosos pra trabalhar menos
que o devido, ainda que mais fosse necessário. Dizia ele que conservar o carro
foi o compromisso assumido diante do Senhor Ministro, que na última visita à
casa lhe dera em mãos as chaves e uma foto, muito digna, com um número que não
podia ser do telefone da capital porque tinha dígitos a menos. Deve ter sido
erro do homem da gráfica, incompetentes relaxados é o que mais no mundo há. Mas
ele não havia de falhar com tão distinto senhor, seu patrão. Jurou por sua honra
não perder um único parafuso daquela máquina tão bonita.
Luzes percorriam o céu. Felipa corria, com a pele arrepiada
e fraqueza nos joelhos, enquanto os pássaros indiferentes continuavam a voar em
círculos.
- Não vê que a tempestade já está chegando, homem?
- O quê?
Passara mais um estrondo. Nenhum dos dois se tinha ouvido.
- A tempestade! – berra com ódio a enfermeira.
- Exatamente!
- Então, vai ficar aí?
- Claro! É agora mesmo que não saio de jeito nenhum! Onde já
se viu? E se eu me atolar na lama? E se um galho risca a tinta do carro? Não,
não... Se quiser, que vá à pé!
- Mas a menina doente está lá fora, no vento e na chuva!
- Culpa desses incompetentes e relaxados que trabalham
dentro da casa! Eu é que vou pagar o preço por eles? Já disse que não!
Levantando-se lentamente, e já sem conter a tosse pesada,
Felipa sentia dores no tornozelo. Devia tê-lo torcido na última queda.
Continuou a andar e a gritar pelos pássaros, assobiando, girando o guarda-chuva
que vezes sem conta se dobrava ao contrário entregando-se ao vento.
- Não vêem que a tempestade está chegando? Já caem as
primeiras gotas! Venham!
Outro estouro fez vibrar os ares. Felipa assustou-se,
protegeu a cabeça, quase deixando o guarda-chuva fugir em meio à tosse
desenfreada. A enfermeira, girando a chave do carro, benzeu-se com o sinal da
cruz e rezou em nome de todos os santos que desconhecia. Sem nenhum controle da
máquina, pôs o carro saltitar por duzentos metros, sem saber se por causa dos
buracos, da falta de perícia na condução ou de ter passado por cima do
motorista caído ao chão. Um som irritante ecoava dentro do carro, só não sabia
se era a buzina ou o próprio choro.
Os pássaros começaram a voar mais baixo, entretanto, ainda
distantes. O céu já se fazia negro, aceso por raios que orientavam Felipa em
intervalos irregulares. Ainda eram quatro da tarde.
- Não há nenhuma árvore que os proteja, passarinhos, porque
teimam tanto? Rápido, rápido!
Gotas grossas e frias atingiam o carro, abafando qualquer
outro som que lá dentro houvesse. Aquela lata pomposa podia não ser tão grande,
tinha bons faróis. A enfermeira continuava a balbuciar mistérios, nem oração
nem xingamento, apenas o misto de medo e falta de alternativa senão buscar a
filha de seus senhores a tempo de encontrá-la viva e curável. Em meio a
solavancos, um tom mais forte se elevou, provocando uma rachadura do vidro.
Caía granizo.
- Valha-me Deus que essa menina morre agora!
Com as duas mãos, Felipa fazia força, quase carregada pelo
vento, braços esticados e tesos para não perder o guarda-chuva. O corpinho
vergava-se com a tosse. As pedras frias doíam-lhe no corpo, mas incomodavam mais
ainda os pés descalços, desacostumados a espinhos, lama, grama e pedras de
gelo.
- Não, não... - tossia com mais violência - Esse é o único
abrigo para os pássaros perdidos! Não!
Um foco branco raquítico se lançou na direção de Felipa. A
enfermeira finalmente a havia encontrado, mas um barranco impedia que avançasse
com o carro.
- Ó não, aves estúpidas! A enfermeira está a caminho e vocês
continuam a não ver a força da tempestade? Querem morrer a troco de quê?
O vestido em pedaços, molhado, imundo, só aumentava sua vontade
de tossir. As forças já acabavam, mas sentia-se na obrigação de trazer de volta
as aves que vira nascer e partir o ovo, ainda com os olhos fechados. Tão feios
são quando nascem, tão esplendorosos voam entre raios. Duas pedras de gelo
batem-lhe na cabeça, causando muita dor. Tosse com muita força.
A enfermeira, com uma larga tira de couro em torno do corpo
volumoso, não tinha nenhuma agilidade física para correr atrás de Felipa. Já
estava fora de si, repetindo uma reza que só inconscientemente sabia. Via
pouco, pois a menina se havia afastado da luz dos faróis, carregada pelo vento.
Água de chuva e de lágrima se misturavam, e ela as bebia em largos goles.
Parecia ouvir a trovoada chamar seu nome.
Felipa sentia algo quente escorrer pela testa, já atingindo o
queixo. Não sentia muito bem as pernas, mas continuava a andar, trôpega. Tossia
sem trégua, conduzida ao bel prazer do guarda-chuva seduzido pelo vento.
Pressentia que algo se aproxima dela, mas não conseguia ver porque o líquido
quente lhe tinha escorrido sobre os olhos .
Exausta, num passo final daquela dança cruel, sentiu o braço
torcer e, num segundo, já o guarda chuva ia longe. As pernas falharam
completamente e já se preparava para o choque violento contra a terra, quando
uns braços firmes a seguraram.
De dentro da casa, outros empregados ouvem um último
trovejar, mais intenso que outros todos, e vêem um véu branco cobrir o
horizonte. Nem o portão se distinguia no meio de toda aquela água. Em silêncio
pousaram um pano atrás da porta, a fim de não formar poças na sala. Puseram-se
à espera, reverentes.
Os pássaros voltaram no verão seguinte.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Traversura no Facebook
Quem porventura (e por graça!) gostar dos meus textos, já pode acompanhar o Traversura pelo Facebook: http://www.facebook.com/Traversura
Mais prático e divertido, né? =)
Mais prático e divertido, né? =)
sábado, 7 de janeiro de 2012
Que sejas
Que sejas tu meu amor derradeiro:
vivo e certeiro qual tempo que vai
singrando meu norte, unindo-o à tua sorte,
sem medo ou degredo frente a algum ai.
Que sejas tu meu amor derradeiro,
celeiro de vida erguida do chão:
de semente plantada, de muda
enxertada - ou de flor em botão.
Que sejas tu meu amor derradeiro,
braseiro inda aceso ao frio de abril.
Resiste comigo até o jazigo:
faremos da morte um beijo gentil.
vivo e certeiro qual tempo que vai
singrando meu norte, unindo-o à tua sorte,
sem medo ou degredo frente a algum ai.
Que sejas tu meu amor derradeiro,
celeiro de vida erguida do chão:
de semente plantada, de muda
enxertada - ou de flor em botão.
Que sejas tu meu amor derradeiro,
braseiro inda aceso ao frio de abril.
Resiste comigo até o jazigo:
faremos da morte um beijo gentil.
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Frango amargo
o que é que é ?
Ela tinha acabado de chegar da escola, e esqueceu de dar o beijo no pai.
Ele sempre sentia uma tristeza amendoada quando ela se esquecia do
beijinho. De qualquer forma, abriu um sorriso e esperou pelo resto da
pergunta, devia ser engraçadita. Nada veio. Só a pergunta, de novo:
o que é que é?
Pois, a charada não chegou a lado nenhum. O pai outonou o sorriso,
franziu o pensamento. Os olhos grandes da menina passeavam pelas
órbitas, estelarmente azuis e etéreos, como quem sabe que vai ganhar e
desdenha a própria vitória. Tentava lembrar de algo mais original pra
aliviar o constrangimento da menina por ter esquecido a anedota. Só
vinha à memória o lastimável "corre em pé e corre deitado", mas não
haveria de infantilizá-la. Ela, porém, estava leve, de nada parecia
sentir falta além do constrangimento. Hm... ok, lembrou-se. Quando ia
tomar fôlego pra terminar a charada com qualquer coisa interessante, a
mocinha interrompeu-o, elevando um pouco o tom da voz, repetindo:
o que é que é?
Três vezes? Não tinha graça nenhuma. Pelo visto, pra nenhum dos dois. Qual o problema dela?
Segurou fime no queixinho da pequena, encarando-a. Ela parecia já nem
lembrar que tinha perguntado alguma coisa, parecia inatingível. Não
sorriu nem exprimiu nenhuma reação, mesmo que o pai pusesse alguma força
nos dedos. Ele continuou olhando pra ela, muito sério e muito fixo.
Até que viu-se nos olhinhos flutuantes dela, ateu. Ajeitou-se na mesa e
almoçou sozinho, rasgando o frango nos dentes e segurando-o com as duas
mãos.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
Ai! que morro
Ai! que morro todos os dias
no tão querer não querer tanto
amar a cela que me encerra
e o nó que me estrangula.
Porque é grande o céu e vivo o sol
na aurora
dessa liberdade que me grita
o nome
rua afora,
ecoando em si a força do que ainda há de ser já sendo agora.
no tão querer não querer tanto
amar a cela que me encerra
e o nó que me estrangula.
Porque é grande o céu e vivo o sol
na aurora
dessa liberdade que me grita
o nome
rua afora,
ecoando em si a força do que ainda há de ser já sendo agora.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
manhã mestiça
a noite
espera
dispersa
a madrugada
há geada.
um raio
trai a chuva
traz à luz
cega alvorada
má dragada
em madre amada
nasce o dia.
cinza.
terça-feira, 25 de outubro de 2011
pecado
Poderluxúrialascíviaorgulho, com volúpiagula
Engulo, deixando escorrer fervente em todo
Corpo febrilconvulsivoardenteexpansivamentrêmulofrementeefi nalmente
Acaba.
Depois,
O nada. E só.
Engulo, deixando escorrer fervente em todo
Corpo febrilconvulsivoardenteexpansivamentrêmulofrementeefi nalmente
Acaba.
Depois,
O nada. E só.
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
abismo toante
abismos por todo lado
o céu, a cova, o eu, o outro.
estonteado bailado
só não caio, assim de todo,
pois no amor estou envolto.
o céu, a cova, o eu, o outro.
estonteado bailado
só não caio, assim de todo,
pois no amor estou envolto.
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
Imersão
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
Casa Torta
- Traz o cobertor, filha, está ali em cima do baú.
A garotinha, com pijama de flanela e tranças que facilitavam o pentear do cabelo na manhã seguinte, foi pisando as meias por cima dos brinquedos espalhados pelo pequenino quarto de dormir. No caminho de volta à cama, Carolina parou em frente à estante baixa. Agachou-se a admirar a lombada dos gigantescos livros infantis que não sabia ler ainda.
- Quer que eu conte uma história pra você, Carol?
Carolina olhou a mãe lentamente. Virou-se uma vez mais para os livros e escolheu um de capa amarela.
- Hoje eu que vou ler pra senhora dormir. Mas é pra dormir, tá bem?
- Sim, senhora, mocinha - retrucou a mãe bem-humorada, ajeitando o travesseiro da menina. E por que você escolheu essa história?
- Por que eu gosto desse cheiro, ó. - Dizendo isso, enfiou a gravura emborrachada da capa debaixo do nariz da mãe, tentando fazer cosquinha*. - Agora deixa eu te cobrir. Pronto, fecha os olhinhos pra imaginar melhor.
A mãe tinha muito prazer em ver a filha imitar seus gestos. Nessas horas tinha impressão de que a educação da menina não ia tão mal como seu pânico de tempos atrás previa. Solange fechou os olhos e esperou. Esperou. E estranhou.
- Ué, cadê a história, Carol?
A menina olhava o livro aberto com muita preocupação.
- Mãe... isso aqui está errado.
- O quê?
- Isso tudo...!
Os braços magrinhos se erguiam no ar como se fossem de uma matrona italiana. A mãe sentou-se na cama, curiosa, e trouxe a filha pra perto.
- Espera, vamos ver. O que é "isso tudo"?
- Esse livro é meu, não é?
- É.
- Então por que ele tá todo escrito se eu não sei ler? Era pra ser sem palavras, só com as figurinhas... E agora, como vou te contar a história?
A mãe sentiu orgulho, sabe-se lá por quê. E o avô, na quinta-feira, adoraria saber dessa façanha.
- É porque quem escreveu esse livro sabia que a mamãe ia estar aqui pra ler pra você. Quando você aprender a ler, poderá ler sozinha, é só esperar, meu amor.
A menina não parecia muito convencida. Fechou o livro e abandonou-o em seu próprio colo. O dedinho passeava desconsolado e lento pelo alto relevo do emborrachado. Solange esperava que Carolina rompesse seu próprio silêncio, até que o rompante veio.
- Eu não gostei dessa casa, mãe.
O semblante da mãe transfigurou-se de tristeza. A viuvez era muito difícil e ela não sabia até que ponto Carolina compreendia o sentido da morte, menos ainda a necessidade da mãe em sair da casa onde foram tão felizes eles três, agora apenas elas duas. A inocência da filha diante de uma situação tão trágica dilacrava seu coração.
- Ah, Carolita... - Levou a filha ao colo, com livro e tudo. - Você talvez seja muito pequena pra compreender certas escolhas que os adultos têm que fazer. É que depois que... aconteceu aquele passeio, mamãe encontrou essa casa aqui, que é mais perto da sua escola. Não é melhor?
Carolina, não se sabe se por dissimulação ou inocência, esperou ainda alguns segundos pra retrucar:
- Não, mãe, não é dessa daqui, é essa do livro.
A mãe até deixou o braço cair pra descontrair os músculos tão tensos.
- O que há de errado nela?
- Ela é torta. E usa chapéu.
A mãe riu-se de leve. De alívio.
- E por que as casas não podem usar chapéu?
- Podem, mas só se elas forem carecas igual o tio Fernando, pra se proteger do sol e não queimar os miolos.
O papo havia voltado ao normal. Carol recomeçava as tautologias da família e dava sua risada gostosa e com os primeiros indícios de sono.
- Mamãe pode então contar a história pra você?
- A gente conta junto, então, mamãe. A senhora fala do que está escrito e eu da figurinha.
Começaram a contar a história mista. A mãe ficou com a narração e Carol com as falas inventadas, o que fazia que cada página levasse ao menos cinco minutos de leitura. Na quarta página, quando Carol já piscava com mais demora que o habitual, a mãe começou a escorregar a menina para a cama, disfarçadamente, para que ela não perdesse o clima nem o sono. Sem perceber, Carol ia se deixando adormecer e passou os olhos mal conscientes pela capa do livro. A mãe deixou o último gancho narrativo pra ver se a menina ainda estava acordada. Foi quando ela proferiu as últimas falas da noite.
- Aí o Frederico disse: "Eu não gosto dessa casa, mamãe". E a mamãe respondeu: "Mas nessa casa tem um carro que voa, você não gosta dele?"
A mãe tentou articular alguma narração pra que ela dormisse logo, mas o coração ficou aos pulos de repente. Carol bocejou longamente.
- Aí o Frederico respondeu - deu outro bocejo ainda maior - todo sorridente: "Quero, quero! Assim a gente vai poder visitar o papai, lá no céu!"
Carolina tombou pra um lado e dormiu pesadamente. Solange tombou pro outro e levemente chorou.
A garotinha, com pijama de flanela e tranças que facilitavam o pentear do cabelo na manhã seguinte, foi pisando as meias por cima dos brinquedos espalhados pelo pequenino quarto de dormir. No caminho de volta à cama, Carolina parou em frente à estante baixa. Agachou-se a admirar a lombada dos gigantescos livros infantis que não sabia ler ainda.
- Quer que eu conte uma história pra você, Carol?
Carolina olhou a mãe lentamente. Virou-se uma vez mais para os livros e escolheu um de capa amarela.
- Hoje eu que vou ler pra senhora dormir. Mas é pra dormir, tá bem?
- Sim, senhora, mocinha - retrucou a mãe bem-humorada, ajeitando o travesseiro da menina. E por que você escolheu essa história?
- Por que eu gosto desse cheiro, ó. - Dizendo isso, enfiou a gravura emborrachada da capa debaixo do nariz da mãe, tentando fazer cosquinha*. - Agora deixa eu te cobrir. Pronto, fecha os olhinhos pra imaginar melhor.
A mãe tinha muito prazer em ver a filha imitar seus gestos. Nessas horas tinha impressão de que a educação da menina não ia tão mal como seu pânico de tempos atrás previa. Solange fechou os olhos e esperou. Esperou. E estranhou.
- Ué, cadê a história, Carol?
A menina olhava o livro aberto com muita preocupação.
- Mãe... isso aqui está errado.
- O quê?
- Isso tudo...!
Os braços magrinhos se erguiam no ar como se fossem de uma matrona italiana. A mãe sentou-se na cama, curiosa, e trouxe a filha pra perto.
- Espera, vamos ver. O que é "isso tudo"?
- Esse livro é meu, não é?
- É.
- Então por que ele tá todo escrito se eu não sei ler? Era pra ser sem palavras, só com as figurinhas... E agora, como vou te contar a história?
A mãe sentiu orgulho, sabe-se lá por quê. E o avô, na quinta-feira, adoraria saber dessa façanha.
- É porque quem escreveu esse livro sabia que a mamãe ia estar aqui pra ler pra você. Quando você aprender a ler, poderá ler sozinha, é só esperar, meu amor.
A menina não parecia muito convencida. Fechou o livro e abandonou-o em seu próprio colo. O dedinho passeava desconsolado e lento pelo alto relevo do emborrachado. Solange esperava que Carolina rompesse seu próprio silêncio, até que o rompante veio.
- Eu não gostei dessa casa, mãe.
O semblante da mãe transfigurou-se de tristeza. A viuvez era muito difícil e ela não sabia até que ponto Carolina compreendia o sentido da morte, menos ainda a necessidade da mãe em sair da casa onde foram tão felizes eles três, agora apenas elas duas. A inocência da filha diante de uma situação tão trágica dilacrava seu coração.
- Ah, Carolita... - Levou a filha ao colo, com livro e tudo. - Você talvez seja muito pequena pra compreender certas escolhas que os adultos têm que fazer. É que depois que... aconteceu aquele passeio, mamãe encontrou essa casa aqui, que é mais perto da sua escola. Não é melhor?
Carolina, não se sabe se por dissimulação ou inocência, esperou ainda alguns segundos pra retrucar:
- Não, mãe, não é dessa daqui, é essa do livro.
A mãe até deixou o braço cair pra descontrair os músculos tão tensos.
- O que há de errado nela?
- Ela é torta. E usa chapéu.
A mãe riu-se de leve. De alívio.
- E por que as casas não podem usar chapéu?
- Podem, mas só se elas forem carecas igual o tio Fernando, pra se proteger do sol e não queimar os miolos.
O papo havia voltado ao normal. Carol recomeçava as tautologias da família e dava sua risada gostosa e com os primeiros indícios de sono.
- Mamãe pode então contar a história pra você?
- A gente conta junto, então, mamãe. A senhora fala do que está escrito e eu da figurinha.
Começaram a contar a história mista. A mãe ficou com a narração e Carol com as falas inventadas, o que fazia que cada página levasse ao menos cinco minutos de leitura. Na quarta página, quando Carol já piscava com mais demora que o habitual, a mãe começou a escorregar a menina para a cama, disfarçadamente, para que ela não perdesse o clima nem o sono. Sem perceber, Carol ia se deixando adormecer e passou os olhos mal conscientes pela capa do livro. A mãe deixou o último gancho narrativo pra ver se a menina ainda estava acordada. Foi quando ela proferiu as últimas falas da noite.
- Aí o Frederico disse: "Eu não gosto dessa casa, mamãe". E a mamãe respondeu: "Mas nessa casa tem um carro que voa, você não gosta dele?"
A mãe tentou articular alguma narração pra que ela dormisse logo, mas o coração ficou aos pulos de repente. Carol bocejou longamente.
- Aí o Frederico respondeu - deu outro bocejo ainda maior - todo sorridente: "Quero, quero! Assim a gente vai poder visitar o papai, lá no céu!"
Carolina tombou pra um lado e dormiu pesadamente. Solange tombou pro outro e levemente chorou.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
Dizes tu
Por que tu me ralhas?
Que tanto folgar
se caio ante a ti?
Pois essas batalhas
que dizes ganhar
eu não as perdi.
Anuvemci.
Que tanto folgar
se caio ante a ti?
Pois essas batalhas
que dizes ganhar
eu não as perdi.
Anuvemci.
segunda-feira, 4 de julho de 2011
A moça do Cardigã
(Villanelle)
- Adorei seu cardigã.
Gastei todo meu latim
e você me disse: "hã?"
Para te ver de manhã,
Dormi só no botequim.
Adorei seu cardigã...
- Comprei-te boa maçã.
Gastei todo meu dindim
e você me disse: "hã"?
Armei-me todo em galã,
me vesti como pinguim.
Adorei seu cardigã...
- Que tal sair amanhã?
Implorava por um sim
e você me disse: "hã"?
Ah, parei de ser seu fã!
É surda, ou coisa assim?
Adorei seu gardigã...
E você me disse: "hã"!
- Adorei seu cardigã.
Gastei todo meu latim
e você me disse: "hã?"
Para te ver de manhã,
Dormi só no botequim.
Adorei seu cardigã...
- Comprei-te boa maçã.
Gastei todo meu dindim
e você me disse: "hã"?
Armei-me todo em galã,
me vesti como pinguim.
Adorei seu cardigã...
- Que tal sair amanhã?
Implorava por um sim
e você me disse: "hã"?
Ah, parei de ser seu fã!
É surda, ou coisa assim?
Adorei seu gardigã...
E você me disse: "hã"!
Villanelle do fogo
(Villanelle dos condenados - fogo)
O orgulho nos saúda com um beijo,
eriça o ego protuberante
na fornalha ardente do desejo
É dele o fogo e todo o lampejo;
fervor constante, boca crispante:
o orgulho nos saúda com um beijo.
Armadilhados nesse cortejo
entramos, qual cavalo trotante,
na fornalha ardente do desejo.
Não percebemos, em tal ensejo,
as brasas que somos. Triunfante,
o orgulho nos saúda com um beijo.
Então ergo os olhos, enfim vejo
incinerar-se o destino errante
na fornalha ardente do desejo.
Molha-me, toda água do Tejo!
Todavia não és o bastante...
O orgulho nos saúda com um beijo
na fornalha ardente do desejo.
O orgulho nos saúda com um beijo,
eriça o ego protuberante
na fornalha ardente do desejo
É dele o fogo e todo o lampejo;
fervor constante, boca crispante:
o orgulho nos saúda com um beijo.
Armadilhados nesse cortejo
entramos, qual cavalo trotante,
na fornalha ardente do desejo.
Não percebemos, em tal ensejo,
as brasas que somos. Triunfante,
o orgulho nos saúda com um beijo.
Então ergo os olhos, enfim vejo
incinerar-se o destino errante
na fornalha ardente do desejo.
Molha-me, toda água do Tejo!
Todavia não és o bastante...
O orgulho nos saúda com um beijo
na fornalha ardente do desejo.
quarta-feira, 22 de junho de 2011
Villanelle dos condenados
Experimento com a estrutura formal da villanelle. Não sei se a ideia do texto ficou clara, mas pra primeira vez, achei válido. =)
Do lado contrário da sorte
Sem medo, sem vista ou porquê,
Zombamos e rimos da morte
Quem há que com isso se importe?
Em que se fia, teme ou crê
Do lado contrário da sorte?
Flecha ardente em certeiro norte
Abatendo o que não se vê
Zombamos e rimos da morte.
Se nos desgasta o braço forte,
Ou se a aljava nos desprovê
Do lado contrário da sorte,
De onde extraimos o suporte?
Pois em fuga, em frágil cupê
Zombamos e rimos da morte.
Nosso erro talhou-nos um corte.
Cegos de dor, ufanos porque
Do lado contrário da sorte,
Zombamos e rimos da morte.
quinta-feira, 16 de junho de 2011
A menina dessonhada | Contos da Terra Má
Houve um tempo em que esta era uma terra cheia de maldade, e as pessoas
que tinham sonhos eram vistas como tolas, ingênuas, verdadeiras pobres
coitadas. Nesse tempo houve uma menina que vivia rodeada por seus
sonhos, e eles eram muitos, pequenos e barulhentos como um enxame de
moscas berneiras.
Mesmo cheia de maldade, havia ainda naquela terra muito boa gente, que de pronto se compadeceu da menina. E foi assim, movida por grande compaixão, que toda aquela boa gente empreendeu a primeira grande caçada ao enxame de sonhos berneiros. Afinal, a pobre a menina tão sozinha e órfã não poderia ser ingênua numa terra tão cheia de maldade.
Tola e assustada, a menina fugiu para uma das curvas do mundo e ali, sem escolha, aconchegou seus sonhos num cantinho bem escondido da alma, naquele lugar que só Um conhece. Cobriu-os com uma esperança bem fresca e cantou durmam, durmam, sonhos meus/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso vocês podem descansar para os fazer dormir.
A boa gente, ávida por socorrê-la, de tanto procurar conseguiu encontrá-la, toda dessonhada e desrumada, na árida vereda da curva sem fim. Sem fazer perguntas (era uma gente compassiva), levaram-na de volta àquela terra cheia de maldade que afinal era seu lar. Viram pelos buracos visíveis em sua alma que os sonhos berneiros se haviam enveredado por outros zumbidos. E a boa gente sorriu aliviada.
Mas a compaixão silente durou pouco. No cair da noite a menina - gentilmente carregada em braços tão compassivos - olhou para o céu a ver se encontrava qualquer estrela que lhe testemunhasse uma faísca da Grande Luz. Imediatamente, a boa gente nada ingênua deu-se conta da farsa, ela continuava a mesma tola de sempre, pois só pobres sonhadores berneiros vêem como luz as toscas cabeças de alfinete que pregam a noite no céu.
E a terra tão cheia de maldade começou a segunda caçada aos sonhos da menina. Escarafuncharam com dentes, canivetes e nenhuma anestesia cada pedaço de sua alma furada à procura das larvas deixadas por aquelas extirpáveis moscas berneiras. Não que não importasse se a pequenina ficasse em frangalhos, era apenas uma medida drástica para uma situação de emergência, depois de curada a menina agradeceria por tão grande compaixão. Impossibilitados de encontrar algum vestígio, cuidadosamente deitaram a menina numa caminha, para que descansasse enquanto não chegasse o especialista vindo da Terra Perversa para a analisar com mais perícia seu grave estado. Só não cantaram pra ela dormir.
Sem canção que a embalasse, a menina lembrou-se de que havia ainda um último lugar onde poderia se esconder daquela boa gente que a mantinha refém de tão grande compaixão. Cuidadosamente, revirou os entulhos no canto da cela, digo, sala, onde puseram os pedaços partidos de sua alma. As mãos suavizadas encontraram, enfim, um cantinho bem escondido, aquele lugar que só Um conhece, excelente refúgio para que se escondesse do perito iminente.
Tentou entrar, mas seus sonhos estavam muito maiores do que quando os pusera ali. Tentou acordá-los à força, entretanto, por ser tola, não sabia que apenas o som mais breve e cortante do mundo é capaz de despertar um sonho adormecido. Enfraquecida, deixou-se cair diante do cantinho bem escondido da alma e pensou que acabou-se tudo, parto mas meus sonhos ficam. Ainda bem que há ao menos Um que sabe onde eles estão e pode cuidar deles por mim, e chorou.
Toda lágrima despregante dos olhos, não importa se é doce ou amarga, faz a gente sentir um calorzinho quando ela nos toca a pele. Mas é porque somos humanos que chamamos de calor o que um sonho chama de som. Então se deu a alvorada dos sonhos dormentes.
Ao ver a menina triste e sem forças diante de seu refúgio, os sonhos foram saindo, um a um, rodeando-a, como no dia de suas infâncias. Com os olhos turvos de desconsolo, a menina não pôde discernir quem são?Ah! São as boas pessoas que por compaixão me arrancarão o que resta da alma pra que eu não mais sofra nessa terra tão cheia de maldade. De fraqueza, tombou nos braços verdadeiramente compassivos.
A pequenina fatigada foi conduzida a um cantinho bem escondido da alma, naquele lugar que só Um conhece. Seus sonhos aconchegaram-na ali, cobriram-na com amor bem quente e cantaram durma, durma, minha menina/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso você pode descansar para a fazer dormir. Reuniram todos os entulhos partidos e partiram para uma das curvas do mundo.
A terra continuava cheia de maldade, e iniciou-se a terceira grande caçada, para exterminar os monstros que capturaram a protegida de todas as gentes. Alcançaram-nos. O desfecho não foi tão agradável. Os sonhos mais frágeis desapareceram, alguns se converteram em ilusão para sobreviver, outros simplesmente não quiseram suportar a guerra que se mostrava perdida. Foi uma longa caçada, que durou três anos sem pôr-do-sol. Enquanto isso, a menina tola pôde recuperar as suas forças e construir novos sonhos enquanto os mais valentes morriam um por um em sua defesa. A caçada fez a menina amadurecer, deu-lhe a forma e a matéria necessária para construir sonhos encouraçados. Dotou-os de asas, ensinou-lhes o silêncio, revestiu-os com disfarces castanhos e pôs neles uma faísca da Grande Luz. Terminada a guerra, ao tombar do derradeiro sonho antigo, a menina saiu restaurada de seu refúgio, libertando os novos sonhos no moinho de encontro dos quatro ventos.
Foi assim que nasceram os pirilampos.
Mesmo cheia de maldade, havia ainda naquela terra muito boa gente, que de pronto se compadeceu da menina. E foi assim, movida por grande compaixão, que toda aquela boa gente empreendeu a primeira grande caçada ao enxame de sonhos berneiros. Afinal, a pobre a menina tão sozinha e órfã não poderia ser ingênua numa terra tão cheia de maldade.
Tola e assustada, a menina fugiu para uma das curvas do mundo e ali, sem escolha, aconchegou seus sonhos num cantinho bem escondido da alma, naquele lugar que só Um conhece. Cobriu-os com uma esperança bem fresca e cantou durmam, durmam, sonhos meus/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso vocês podem descansar para os fazer dormir.
A boa gente, ávida por socorrê-la, de tanto procurar conseguiu encontrá-la, toda dessonhada e desrumada, na árida vereda da curva sem fim. Sem fazer perguntas (era uma gente compassiva), levaram-na de volta àquela terra cheia de maldade que afinal era seu lar. Viram pelos buracos visíveis em sua alma que os sonhos berneiros se haviam enveredado por outros zumbidos. E a boa gente sorriu aliviada.
Mas a compaixão silente durou pouco. No cair da noite a menina - gentilmente carregada em braços tão compassivos - olhou para o céu a ver se encontrava qualquer estrela que lhe testemunhasse uma faísca da Grande Luz. Imediatamente, a boa gente nada ingênua deu-se conta da farsa, ela continuava a mesma tola de sempre, pois só pobres sonhadores berneiros vêem como luz as toscas cabeças de alfinete que pregam a noite no céu.
E a terra tão cheia de maldade começou a segunda caçada aos sonhos da menina. Escarafuncharam com dentes, canivetes e nenhuma anestesia cada pedaço de sua alma furada à procura das larvas deixadas por aquelas extirpáveis moscas berneiras. Não que não importasse se a pequenina ficasse em frangalhos, era apenas uma medida drástica para uma situação de emergência, depois de curada a menina agradeceria por tão grande compaixão. Impossibilitados de encontrar algum vestígio, cuidadosamente deitaram a menina numa caminha, para que descansasse enquanto não chegasse o especialista vindo da Terra Perversa para a analisar com mais perícia seu grave estado. Só não cantaram pra ela dormir.
Sem canção que a embalasse, a menina lembrou-se de que havia ainda um último lugar onde poderia se esconder daquela boa gente que a mantinha refém de tão grande compaixão. Cuidadosamente, revirou os entulhos no canto da cela, digo, sala, onde puseram os pedaços partidos de sua alma. As mãos suavizadas encontraram, enfim, um cantinho bem escondido, aquele lugar que só Um conhece, excelente refúgio para que se escondesse do perito iminente.
Tentou entrar, mas seus sonhos estavam muito maiores do que quando os pusera ali. Tentou acordá-los à força, entretanto, por ser tola, não sabia que apenas o som mais breve e cortante do mundo é capaz de despertar um sonho adormecido. Enfraquecida, deixou-se cair diante do cantinho bem escondido da alma e pensou que acabou-se tudo, parto mas meus sonhos ficam. Ainda bem que há ao menos Um que sabe onde eles estão e pode cuidar deles por mim, e chorou.
Toda lágrima despregante dos olhos, não importa se é doce ou amarga, faz a gente sentir um calorzinho quando ela nos toca a pele. Mas é porque somos humanos que chamamos de calor o que um sonho chama de som. Então se deu a alvorada dos sonhos dormentes.
Ao ver a menina triste e sem forças diante de seu refúgio, os sonhos foram saindo, um a um, rodeando-a, como no dia de suas infâncias. Com os olhos turvos de desconsolo, a menina não pôde discernir quem são?Ah! São as boas pessoas que por compaixão me arrancarão o que resta da alma pra que eu não mais sofra nessa terra tão cheia de maldade. De fraqueza, tombou nos braços verdadeiramente compassivos.
A pequenina fatigada foi conduzida a um cantinho bem escondido da alma, naquele lugar que só Um conhece. Seus sonhos aconchegaram-na ali, cobriram-na com amor bem quente e cantaram durma, durma, minha menina/ me ponho em seu lugar/ enquanto me canso você pode descansar para a fazer dormir. Reuniram todos os entulhos partidos e partiram para uma das curvas do mundo.
A terra continuava cheia de maldade, e iniciou-se a terceira grande caçada, para exterminar os monstros que capturaram a protegida de todas as gentes. Alcançaram-nos. O desfecho não foi tão agradável. Os sonhos mais frágeis desapareceram, alguns se converteram em ilusão para sobreviver, outros simplesmente não quiseram suportar a guerra que se mostrava perdida. Foi uma longa caçada, que durou três anos sem pôr-do-sol. Enquanto isso, a menina tola pôde recuperar as suas forças e construir novos sonhos enquanto os mais valentes morriam um por um em sua defesa. A caçada fez a menina amadurecer, deu-lhe a forma e a matéria necessária para construir sonhos encouraçados. Dotou-os de asas, ensinou-lhes o silêncio, revestiu-os com disfarces castanhos e pôs neles uma faísca da Grande Luz. Terminada a guerra, ao tombar do derradeiro sonho antigo, a menina saiu restaurada de seu refúgio, libertando os novos sonhos no moinho de encontro dos quatro ventos.
Foi assim que nasceram os pirilampos.
terça-feira, 14 de junho de 2011
quarta-feira, 8 de junho de 2011
terça-feira, 7 de junho de 2011
segunda-feira, 6 de junho de 2011
quinta-feira, 26 de maio de 2011
domingo, 1 de maio de 2011
Prelúdio
O mundo, nele tudo é tanto, e tão,
Enquanto
Eu sou apenas, e quase,
Só
Penso: nele ou neu
A desmesura da medida?
finitude
infinita
Enquanto
Eu sou apenas, e quase,
Só
Penso: nele ou neu
A desmesura da medida?
finitude
infinita
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Muro de pedras
(Eu, sentada num muro de pedras
Já meio caído por obra não sei de quem)
Neste campo, nem pasto nem mato
- só um trecho que o asfalto ainda não engoliu -
há um muro de pedras que a nada divide.
O muro está choacoalhado, obra de quem?
Desconheço.
Decresce e morre ao pé da árvore.
(o que em si nada diz senão que o muro caiu e a árvore ficou.)
Quem tiver poesia nas córneas, contemple
Quem a tiver fora, absorva
Por detrás, transborde.
Quem não a tem,
Pegue serra, cimento e areia,
Reconstrua o muro e corte a amendoeira.
Já meio caído por obra não sei de quem)
Neste campo, nem pasto nem mato
- só um trecho que o asfalto ainda não engoliu -
há um muro de pedras que a nada divide.
O muro está choacoalhado, obra de quem?
Desconheço.
Decresce e morre ao pé da árvore.
(o que em si nada diz senão que o muro caiu e a árvore ficou.)
Quem tiver poesia nas córneas, contemple
Quem a tiver fora, absorva
Por detrás, transborde.
Quem não a tem,
Pegue serra, cimento e areia,
Reconstrua o muro e corte a amendoeira.
quinta-feira, 7 de abril de 2011
quinta-feira, 17 de março de 2011
Folha de goiabeira
- Vamos brincar de doente? – sugeriu o irmão do meio, sem muita
ênfase, só pra se ocupar com alguma coisa. Mas poucos segundos depois
sentiu-se o mais esperto do mundo, porque viu que sua idéia fez brilhar
os olhos da irmã mais velha.
- Isso! Eu sou a mãe que coloca a rodela de batata gelada na testa, o
Marquinho é o pai doente e você é o filhinho que fica de olho
arregalado na beira da cama. Vai, Marquinho, deita ali perto da areia.
O irmão mais novo foi para o local indicado arrastando os pés. Já há
alguns dias andava assim, amuado, quietinho, meio mole, só aceitou
brincar porque seu papel era ficar deitado na grama pegando sol.
A irmã correu até a goiabeira pra pegar umas folhas que seriam as
batatas geladas. Enquanto isso, o irmão do meio descalçava os sapatos
para ficar mais confortável sentar sobre os pés.
- Pronto, voltei. Agora, Marquinho, você diz ai…ai… aaai…
- Não quero dizer nada…
- Tem que dizer, ué. Era assim que o papai fazia, você tem que fazer igual.
Marquinho olhou pra ela e ficou calado. A irmã deu de ombros e continuou a brincadeira.
- Ah, meu Deus, ele está ardendo em febre! Filho, vai lá na cozinha e
me traz uma vasilha com água da geladeira, rápido. Essas batatas já
estão ficando quentes.
- É pra ir de verdade?
- Não, né? De mentirinha, só. Finge que seu sapato é a vasilha, vai
ali na margarida e finge que ela é a garrafa, vai. Amor, ainda tá doendo
muito?
Com muito carinho e delicadeza, tirou as folhas de goiabeira da testa
de Marquinho, pôs a mão a sentir a temperatura, e continuou sussurando
“Ai, meu Deus, ajuda ele…”. Voltou o irmão do meio.
- Aqui está mamãe. Olha, eu coloquei essas pétalas pra fingir que é a água, tá bom?
- Não, então deixa a pétala ser o gelo. Obrigada, meu filho. Agora vai lá pra fora brincar com seus irmãos mais velhos.
- Tá bem, obrigada, mãe.
- Não, não é assim. Você tem que ficar. Lembra que o Marquinho ficava
lá com eles o dia todo? Você é o filho mais novo, o mais novo tem que
ficar sentado no pé da cama.
- Ah, não, eu quero ser eu…
- Depois a gente brinca você sendo você. Agora você é o Marquinho e o Marquinho é o papai.
- Ai… ai…
- Olha! O Marquinho resolveu brincar! Isso, Marquinho, mas fala mais alto.
- Mãe…
- Não, eu sou a mãe, mas como você é o papai, você tem que me chamar de amor, ou então de Carlita.
- Ai… mãe…
- Não é assim, Marquinho!
Ela respondia o irmão enquanto misturava as folhas de goiabeira com as pétalas de margarida dentro do sapato do outro.
- Você tá mesmo parecendo a mamãe, mana. Só falta deixar o cabelo cair assim, de lado.
- Ai, mãe…
- Vc acha? É “amor”, Marquinho… O que foi, meu amor? Bebe um
pouquinho de água. Eu preciso tirar esse cobertor, deixa, vai… Olha, a
batata tá geladinha de novo, vou colocar na sua testa.
O irmão do meio tentava fazer cara de triste, mas o franzido da testa
não durava muito tempo, então começou a mexer nos dedos dos pés,
olhando pra eles. De vez em quando olhava os dois irmãos, que tão bem
interpretavam seus papéis, e voltava a se concentrar nos dedos, pra
interpretar à altura.
- Ih, o Marquinho dormiu. Acorda ele.
- Não, deixa ele dormir, meu filho. Seu pai precisa descansar – disse
a irmã, que não gostava de interrupções realistas no meio da
brincadeira.
A mãe de verdade, Carlita, saiu na porta da frente à procura das crianças, e estancou ao vê-los.
- O que vocês estão fazendo?
- Estamos brincando de doente, mamãe – respondeu a mais velha, assustada.
- Parem agora com isso! Eu não quero saber dessa brincadeira, estão
ouvindo? Levantem os três já e vão lavar as mãos. O lanche de vocês está
pronto.
Os mais velhos deram um pulo e saíram andando rápido com medo de mais bronca.
- Ei, calça seu sapato, mocinho. Marcos, levanta, você já ouviu a
mamãe, não me faça te chamar de novo. – Dizendo isso, deu as costas e
foi andando pra dentro de casa. Antes de entrar, percebeu que o garoto
não se moveu. Estranhou.
- Marcos! Levanta logo! Um… Dois…
Os outros filhos nem chegaram ao banheiro. Ouvindo que Marquinho
levaria bronca, voltaram pra ver, rindo baixinho. A mãe afastou
nervosamente as folhas de goiabeira da testa do filho, e sentiu-as
quentes. Talvez fosse porque ela esteve mexendo na água, a percepção é
sempre diferente.
- Marcos, levanta, agora a mamãe tá pedindo com carinho. Vem, meu filho.
Pegou o menino pelo braço, e o bracinho não ofereceu qualquer
resistência, apenas pendeu mole. O coração de Carilta começou a perder o
compasso.
Vendo a demora na bronca, os filhos foram se aproximando de Carlita, e
já perguntando o que estava acontecendo. Quando a mãe levantou, a filha
viu passar rapidamente em seu rosto o mesmo tom cinza do dia em que a
encontrou no quarto beijando a testa do pai e fechando-lhe os olhos com
as mãos. O cabelo farto caiu de lado da mesma maneira também, só que em
outra direção. Apressada, Carlita foi se dirigindo ao armazém.
- Mãe, era só brincadeira – disse, num começo de pânico, a menina. –
Marquinhos, não ouviu a mamãe chamando? Tem sanduiche de presunto pra
gente, vem…
- O que tá acontecendo? – perguntou o do meio, chegando atrasado.
- Marquinho… Anda… – a filha já tinha lágrima nos olhos. Abaixou-se
pra sacudir o irmão, e ele não reagiu. – Mano, me ajuda a acordar o
Marquinho, rápido… Marquinho…
A essa altura os dois já choravam, o irmão do meio não sabia bem por
quê, mas chorava assim mesmo. Souberam, pelo som dos passos, que a mãe
voltava. Afastaram-se do irmão e com terror fitaram Carlita, uma leoa,
com olhar resoluto e chispante. A mãe repetia de si pra si que uma viúva
não pode perder a compostura, e prosseguiu até junto das crianças.
Abaixou-se e tomou o Marcos nos braços, ouvindo a filha insistentemente
dizer que ele estava só brincando, até aiai ele dizia há poucos minutos.
Mas seu mantra de viúva não a deixava ouvir nada, continuou andando
para os fundos do terreno, onde uma pá a esperava.
- Mãe, não faz isso com ele, ele tá fingindo, é tudo mentirinha, mãe!
A filha esperneava sem fim. Carlita, com uma força e destreza quase
animalesca de tão sobre-humana, fazia a cova ganhar fundura sem demora.
Evitava olhar para o lado, pois a terra que cobria o corpo do marido
ainda não tivera tempo nem de deixar crescer uma erva daninha. Apenas
algumas folhas de goiabeira cobriam a nudez do solo, já secas e
esfareladas. O irmão do meio chorava, mais por estar assustado do que
por compreender o que se passava.
Tomando o filho amolecido nos braços, sob os protestos da mais velha,
Carlita deitou-o na fundura da terra fria com cuidado. Apenas
beijou-lhe a testa, pois não foi necessário fechar-lhe os olhos. Repetia
em sua mente que uma viúva não pode perder a compostura, saiu de dentro
da cova e respirou fundo. Com as mãos, começou a empurrar a terra pra
cima daquele pequeno corpo, sem contudo olhar pra ele.
- Mãe, não enterra o meu irmão!
Carilta continuava indiferente aos gritos da menina, e pouco a pouco,
Marquinhos ia se ocultando. Primeiro os pés, depois os joelhos, o
peito. De súbito, a irmã se calou e fraquejou as pernas. A mãe nem se
apercebeu desse silêncio repentino, e em pouco tempo, já não se via mais
o menino. A filha estava atônita, não conseguia articular nenhuma
palavra, o mais novo chorava finalmente entendendo os fatos. Terminado o
enterro, Carlita acolheu os dois no colo e levou-os para dentro. Nunca
mais tocaram no assunto.
Vinte e nove anos se passaram desde então, mas até hoje a filha treme
quando vê alguém acordar. Ela acredita, com toda a força de sua
inocência sepultada, que Marquinhos abriu os olhos antes que a terra,
misturada com folhas de goiabeira, caísse em seu rosto infantil.
sábado, 5 de março de 2011
Quem, em quatro atos
Quem saberá quem deu bordas ao mar?
Quem, em ardor, lhe contém em furor?
Quem, com bravura e forte figura,
Pode aplacar a revolta do mar?
Quem é que inflama a vida na chama?
Quem, por jogo, dá formas ao fogo?
Quem, com pavio aceso no brio,
Enreda a trama ardente da chama?
Quem pode alçar as alturas do ar?
Quem, num sopro, dá ao vento seu corpo?
Quem, com laço que guie o compasso,
Consegue adestrar as curvas do ar?
Quem emperra o caminho da terra?
Quem, pé no chão, a sustém com a mão?
Quem, com poder germinado em querer,
No bolso aferra os giros da terra?
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
O trevo
Deu-me um terceto a menina
Três frases ele tinha,
Inútil talismã.
Não sabia
Sua alma pequenina
Cedeu uma pétala de alegria
Àquela estrofe tão vã.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Face d’água
Dizem que, quando a Terra era sem forma e vazia, o Espírito de Deus se
movia sobre a face das águas. Devia ser por isso que a cidade era tão maldita; era
desfigurada e lacunosa, mas não havia uma mísera gota d’água em que pudesse
dançar o Espírito.
Os que se lembravam da última chuva eram raros e caducos pela
senilidade. Os meninos em idade escolar não tinham imaginação que chegasse para
acreditar na idéia absurda de água cair do céu, ainda mais de graça. Os homens,
economizando até saliva, jamais saíam às conversas na rua - pelo olhar se
entendiam, desentendiam, faziam crianças e matavam rivais. Aliás, era com o
sangue derramado por esses homens que a terra se saciava, bastava olhar a
cidade em sépia e o tom avermelhado da poeira nas botas dos transeuntes.
Houve nessa terra um homem e sua filha. De sua mulher nada se sabia,
mas o fato era que a velha do chalé fazia o papel de mãe da menina enquanto Fabrício
estava no trabalho. Ele tinha uma profissão um tanto curiosa pra um deserto como
aquele: era escavador de poços profundos. Não de poços artesianos, essas eram escavações
inúteis, não havia água que prestasse na cidade, e a culpa era toda de todos. A
maldade do lugar era tão grande que sua imundície contaminou o solo e enegreceu
a água dos lençóis, deixou-a como grude, com gosto de piche e potável apenas
para ser bebida pelo fogo ardente. Os suíços conseguiam fazer muito dinheiro
com ela, mas não Fabrício. Nem os operadores das máquinas, nem a velha do
chalé.
Foi num dia de verão, com a terra enfumaçada de poeira, miragem e
fuligem, que aconteceu aquilo. O calor excessivo e a garganta seca daquele
meio-dia calaram a voz dos que o julgavam inocente e perturbaram o juízo de
quem o considerava culpado, não sobrou ninguém na rua a ver o desfecho da
história. Na verdade, eram todos cúmplices, nenhuma terra seca é inocente.
Quando ela racha, é porque os corações dos homens já empedraram, como um seio farto
que se recusa a saciar o filho faminto.
Fabrício. Imóvel, insensível, incomunicável. Sua filha, com tranças e
merenda a caminho da escola, antes de atravessar a rua olhou para os dois
lados, estacou quando olhou pra frente.
***
A sombra da menina já assumia um contorno delgado e comprido, e de
nenhum outro movimento foi capaz até que as pernas dobradas deixassem de
sentir. Foi quando uma lagrimazinha escapuliu pelo rosto. Não sabia o que
estava acontecendo. Assustou-se, tremeu. Quis se levantar mas não tinha forças
nos joelhos. A lágrima foi desenhando um caminho tortuoso pela face empoeirada,
enquanto seus olhos se arregalavam e as mãos, sujas e perdidas, não sabiam se
continham o avanço da lágrima audaciosa ou se tentariam erguer o corpo do chão.
Fez um malabarismo qualquer com os olhos para enxergar a lágrima que
passava pela bochecha. O que era aquilo? Era... era água. Água limpa. Transparente.
Água pura. E já pendia na ponta do nariz.
Água.
As mãos descobriram o que fazer, mas antes que se movessem, a lágrima
desprendeu-se. Avidamente, olhou pra terra embaixo de si, mas a lágrima não
havia chegado, evaporou antes de atingir o solo.
Se aquilo era água, ela poderia... As mãos nervosamente puseram-se a friccionar
as pernas, tentando instintivamente fazer o sangue a circular. Tentou reunir
todas as suas dores e lembranças, esfregando as pernas, com força. O pai morto
à sua frente, a mãe desconhecida, a fricção nas pernas. Ela, pequenina, tinha
nos olhos o olho d’água que a terra não tinha. Esmurrava as pernas. A solução e
a dissolução de tudo, a fricção nas pernas,- bem ali em seus olhos. Doíam-lhe
as pernas. Será que os olhos do pai ainda brilhavam atrás das pálpebras? Não
demorou, tinha as vistas embaçadas e em pouco tempo, chorava. Seria ela a fonte
que refrescaria aquela terra maldita?
Seu corpo tremia de choro, engasgava-se. Chorava por todos os poros.
Chorava tanto e tão instensamente, que até a boca chorava, o nariz, a palma das
mãos. Começou a sentir as pernas, e frio. Soluçava. Deu um grito. E mais água
corria. No chão se formava uma tímida poça. O frio aumentava, teve a sensação
de que até seu sangue agora era água pura. Perdeu o controle dos braços.
Chorava com todas as forças, soluçava e de vez em quando sorria.
A velha do chalé assistiu longamente a cena, desde o começo, sentada
no meio-fio. Ao ver o corpinho miúdo tombar no chão, falou de si pra si: “será
que é agora que o Espírito de Deus vem aqui?”. Tendo dito isso, olhou para o
céu. Mas a catarata não a deixou enxergar muito longe.
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